A história é clássica e era repetida por João Ubaldo Ribeiro sempre que alguém perguntava sobre sua motivação para criar Viva o Povo Brasileiro: “Eu queria escrever um livro grande”. E é com ela que o escritor e editor Rodrigo Lacerda abre o texto que produziu para a edição comemorativa do romance que completa 30 anos em dezembro. Previsto para novembro, o volume trará, ainda, ensaio de Geraldo Carneiro já publicado. O anúncio da nova edição foi feito na sexta-feira, 18, quando o escritor e cronista do jornal O Estado de S.Paulo morreu.
Havia outras duas motivações para o desejo de Ubaldo de fazer um romanção, diz Lacerda: “Segundo o escritor, o ímpeto de escrever ‘um livro grande’ era uma resposta à prevenção do pai contra livros ‘que não ficam em pé’, e um troco à provocação do editor Pedro Paulo Sena Madureira, que lhe teria dito certa vez: ‘Vocês escritores brasileiros só escrevem essas merdinhas que a gente lê na ponte aérea'”.
Lacerda era um adolescente de 15 anos quando o livro foi lançado. O pai dele, Sebastião Lacerda, foi um dos editores da obra e viajou a Itaparica com a missão de levar para o Rio de Janeiro os originais em que Ubaldo trabalhava havia três anos. A história também é lembrada em seu texto: “Antes, porém, em clima de festa, o calhamaço foi levado a uma venda e devidamente pesado, atingindo a impressionante marca de 6,2 quilos. Uma vez formatado, o livro alcançaria 673 páginas, no mínimo três vezes o tamanho de seus predecessores”.
O esforço – o escritor tinha se mudado com a família do Rio para Itaparica para se concentrar na obra e gastar menos – foi recompensado. Menos de 15 dias depois de chegar às livrarias, a obra já estava entre as mais vendidas. Foi sucesso de crítica e de público no Brasil e no exterior.
Em sua apresentação, Rodrigo Lacerda conta como era o cenário do País à época em que Viva o Povo Brasileiro foi escrito e as condições em que Ubaldo trabalhou na obra. Situa o romance dentro da bibliografia do autor e o analisa. “João Ubaldo fez dele o grande entroncamento literário de sua carreira, onde todos os outros livros se encontram. Estes, em suas respectivas vertentes, podem ser obras-primas, e as opiniões sobre quais atingem esse nível de grandeza estão condenadas a variar. Mas nenhum deles se propõe a ser um mostruário tão completo dos talentos do escritor”, escreve. E completa: “Viva o Povo é o grande manancial, mas é simultaneamente o escoadouro de tudo. É uma espécie de nave-mãe, que perde em velocidade para os deslocamentos das naves menores, mas paira majestosamente sobre elas. Nele, o que o escritor havia feito antes reaparece, e o que faria depois tem seu anúncio.”
Lacerda comenta, ainda, sobre as características do autor, de sua obra e de seus personagens e diz que o tom geral é dado pelo humor característico de João Ubaldo, “que ri da própria erudição e usa-a para se divertir, mas o elemento cômico se faz notar mesmo na modalidade escrachada”.
Os dois escritores se encontraram em alguns momentos e estavam juntos na memorável passagem do baiano pela Festa Literária Internacional de Paraty, em 2011. Rodrigo Lacerda estava ali como escritor, pesquisador, editor e mediador, e foi tratado, em algumas vezes, com o carinho dedicado aos filhos dos amigos queridos. Foi uma das mesas mais comentada daquela edição da Flip e seu sucesso foi anunciado – foi a primeira a ter os ingressos esgotados.
Leia trecho do ensaio de Rodrigo Lacerda que vai compor nova edição de Viva o Povo Brasileiro:
“João Ubaldo costuma dizer que seu estilo é ‘abarrocado’. Talvez seja um traço adquirido na infância, graças aos sermões de Vieira copiados à mão, em obediência aos castigos paternos…
Mas que ele tem mesmo virtudes em comum com os grandes barrocos, isso tem. É um mestre no domínio sintático, na música do texto e em obter um arranjo belo e fluente a partir de uma imensa carga de elementos. Suas frases transmitem com vivacidade a emoção dos personagens, porém são artesanalmente esculpidas; a sintaxe ora recria a fala oral, ora possui elegância clássica; o vocabulário é excepcionalmente rico, casando termos científicos e elementos do português arcaico a neologismos criados com base na fala popular. Além disso, o escritor é também um homem dotado de vasta formação humanista, o que se mostraria indispensável para sua literatura crescer sem perder força.”
(…)
“Até hoje, Viva o Povo é um ponto fora da curva no panorama brasileiro, por fazer uma espécie de súmula da aventura literária nacional até aquele momento, culminando o projeto modernista iniciado nos anos 1920. Internacionalmente, é o legítimo representante do Brasil na grande onda latino-americana, formada, ainda nos anos 1960-70, por novas formas de representação do passado e da história.”