O escritor norte-americano Ralph Ellison, nos idos de 50, escreveu o romance intitulado “Homem Invisível” (Invisible Man). Tendo o argumento um cunho eminentemente político – as peripécias de um inominado protagonista negro tornado invisível nos Estados Unidos de então -, o livro foi tomado, principalmente, como “a grande obra negra”.
É essa característica, até hoje, a mais acentuada por brancos e negros. Não observam Dostoiévski, Kafka, Joyce, o diálogo com a Literatura, no texto de Ellison. Insistem na “obra-palanque”. Com Machado de Assis, por aqui, ocorreu algo distinto, no entanto, semelhante: “embranqueceram” sua foto oficial e seu trabalho. Em “Brás Cubas”, um dos maiores romances do Bruxo do Cosme Velho, só os especialistas escavaram as tintas do inglês Laurence Sterne ou do francês Xavier de Maistre. A apropriação do discurso dominante como estratégia irônica, traço antologicamente descrito por Walter Benjamin nos textos sobre o poeta Charles Baudelaire, inexiste para muitos leitores atuais do autor de “Dom Casmurro”. Tanto o americano quanto o brasileiro, por serem “de cor”, “escuros”, foram mal interpretados.
Somos, nós negros, homens visíveis – eis a minha tese. Há, em nosso redor, um sutil cordão ideológico que nos restringe a um agir e a um pensar previstos. Misturou-se biologia e cultura no malfadado rótulo “Cultura Negra”.
Os atores negros brasileiros perderam espaço no cinema, na televisão e no teatro. Existe a oblíqua personagem negra. Ao importarmos o projeto “Black is Beautiful”, impusemo-nos um espaço difícil de sair. Há sempre o discurso do criador de que não existe uma classe média negra e o discurso hiper-realista, mentiroso, de um país com complexo de inferioridade. É necessário ressaltar que, no imaginário popular, não se encontra o negro como objeto de desejo e modelo social vigente. Fazemos o que nos é destinado: papel de negro. Ao insistirmos no mote cor e cultura, condenamo-nos ao mais sutil ostracismo.
Nas últimas décadas, a meu ver, a situação piorou. Somos, quando retratados esporadicamente fora do padrão, vistos como exceção, através de um já histórico paternalismo. Criados os tipos de classe-média, iremos falar, explícita ou implicitamente, da cor. Exige-se de nós a Negritude – componente metafísico incompreensível para mim. A carreira de um ator negro vai se estiolando por volta da meia-idade. Conheço casos de protagonistas de minissérie que viraram elenco de apoio no trabalho seguinte.
Temos atualmente uma nova modalidade: o projeto social. Sem perceber que a Arte é, queiram os românticos ou não, forma, depuração, treinamento, diretores ávidos por denunciar a péssima situação do proletariado brasileiro (conseqüentemente, do negro), contratam alunos iniciantes de grupos de teatro de pouquíssima renda. A justificativa é a de que há neles um frescor e uma vitalidade próximos do ambiente retratado. Essa Estética esconde o maior preconceito possível: a impossibilidade dos nossos atores, tarimbados, treinados, em executar aquela ação para a qual estudaram durante anos. Ouvi da boca de um desses diretores que o ator ao qual acabara de me referir era “negro por fora, mas não por dentro” – mais uma vez, confirmando o espaço ideológico destinado a nós.
Portanto, o lema é só um: seja negro ou embranqueça. Lá está a foto de Machado como prova. A barba branca e triste sobre a esquecida pele. Os olhos perdidos. O abandono evidente. A marca d?água, a filigrana inteligentíssima, em todo selo dado a nós: negro, ator negro, papel de negro. Antes, tornássemo-nos invisíveis.
“Par délicatesse j?ai perdu ma vie” (Por delicadeza, perdi minha vida). O verso rimbaudiano acompanha-me desde a adolescência. Tenho-o como uma das pedras angulares da minha existência. Até dias atrás, tinha a palavra delicadeza num sentido positivo, benéfico. O poeta perdera a vida, mas restara-lhe esse universo inigualável do delicado. A perda era compensada, pensava. Lendo um historiador francês, deparei-me com a mesma palavra explorada como processo civilizatório: civilização. E esta última, no texto, como está na moda hoje, tinha um sentido pejorativo. Ora, penso em todos os negros que se sofisticaram, que resolveram entrar no mercado com essa delicadeza. Penso em Rimbaud no meio da África traficando escravos. Tomo o verso, enfim, literalmente: a vida perdida por civilização, por finesse, par délicatesse. Nenhuma terra pertencente a mim. Os olhos escuros, edipianos, amaldiçoados. Olhos de ver todos, olhos de ver muros.