Novecentas gravações, 91 filmes, 2.260 concertos. Os números são superlativos e dão uma primeira ideia da importância que o maestro Herbert Von Karajan teve na música do século 20. Pode-se, nesse sentido, adicionar o fato de que dirigiu grupos importantes e, a certa altura, foi chefe ao mesmo tempo nas filarmônicas de Berlim e Viena, na Orquestra de Paris e no Festival de Salzburgo.
São dados que voltam à mente no momento em que se lembram os 25 anos da morte do maestro, em 16 de julho de 1989. Ele estava então com 81 anos e, em uma entrevista dada pouco antes, disse estar convencido de que as pessoas têm várias vidas.
“Goethe disse acertadamente: ‘Se minha vida interior tem tanto a dar e meu corpo se recusa a servi-la, a natureza tem que me oferecer um novo corpo”. Asseguro que voltarei.”
Em certo sentido, ele nunca nos deixou. Seu legado discográfico rende constantemente novas edições – a Filarmônica de Berlim, por exemplo, lançou recentemente uma caixa com 38 CDs, a Karajan Symphony Edition, que recupera registros de ciclos completos de sinfonias de autores como Schumann, Schubert, Brahms e Beethoven. Ao contrário do que acontece após a morte de muitos artistas, no entanto, não foram lançadas gravações inéditas do maestro – e isso porque ele deixou ordem para que todo o material não aprovado por ele para lançamento fosse queimado assim que se divulgasse a notícia de sua morte. No túmulo, Karajan almejava o mesmo controle de sua imagem que em vida – e nessa construção do mito está um dos aspectos mais importantes de sua atuação.
Herbert Von Karajan nasceu em 1908, em Salzburgo, na Áustria. Em sua juventude, ávido por espaço e chances profissionais em um meio musical competitivo, filiou-se à SS e flertou com o regime nazista – passado sobre o qual nunca gostou de falar e que foi ignorado, após a guerra, pelo comitê de desnazificação, que não impediu seu estabelecimento em Londres, onde começaria a construir seu império como maestro. Lá, o produtor inglês Walter Legge criou para ele uma orquestra, a Philharmonia, e começou a lançar gravação após gravação com todo o repertório tradicional. Em 1955, com a morte de Wilhelm Furtwängler, Karajan assumiu a Filarmônica de Berlim, onde reinaria absoluto até o fim da vida.
Em uma época em que a espacialização ainda não era dominante no cenário musical, Karajan gravou de tudo, de música barroca a autores do começo do século 20. O melhor desempenho, no entanto, ele demonstrava nos autores clássicos e românticos e também nas óperas italianas e alemãs, em especial as que gravou até o começo da década 1970. Registrou três ciclos integrais com as nove sinfonias de Beethoven – e a melhor é a de 1962, de certa forma a síntese de toda uma tradição anterior de interpretação desse repertório. Seu Falstaff, de Verdi, é imbatível – e a pegada camerística com que se aproxima de Wagner e seu Anel do Nibelungo é testemunho da regência autoral de seus melhores momentos.
Não dá para dissociar Karajan de seu trabalho discográfico. Toda a sua carreira foi construída em torno da percepção da tecnologia como veículo para a construção de um legado artístico. Talvez por conta disso, com o passar do tempo, suas leituras tenham se tornado mais frias – ou menos personalistas -, uma vez que tinham como foco a perfeição técnica na execução e na captação do som. Nesse sentido, aliás, é que vai se criar a rivalidade com o americano Leonard Bernstein, outro grande da regência da época, cujo olhar extremamente emotivo e pessoal era o ponto de partida para que ele construísse suas interpretações, muitas vezes idiossincráticas.
Seja como for, a tecnologia se prestou à construção do mito Karajan. Em seus vídeos, que ele eventualmente acabaria dirigindo após testar diversos diretores, os jogos de câmera e iluminação mantêm o foco sempre na figura do regente que, de olhos fechados, sem observar seus músicos, os relega a uma posição secundária, massa amorfa que ganha forma apenas pelas mãos do regente inspirado, de onde emana de fato a música, em contato direto com os grandes compositores da história.
Mas, vinte e cinco anos depois da morte de Karajan, o mundo musical mudou muito.
Gravações já não são a medida pela qual se julga um talento e a interpretação criada em estúdio, com foco na perfeição sonora, caiu em desuso perante o registro ao vivo e a emoção do momento, que contempla a fugacidade e o imponderável do ato de fazer música como o que ele pode oferecer de melhor. Da mesma forma, coloca-se em xeque a figura do maestro autoritário, que reina absolutista sobre seus músicos.
O que resta, então, de Karajan hoje? Quem seria no cenário atual um substituto à altura?
Karajan foi sim símbolo de uma época – e o que entendemos como música clássica na segunda metade do século 20 passa necessariamente pelo conhecimento de seu trabalho. Isso não quer dizer que sua atuação ficou datada. Mas sugere que encontrar seu substituto não pode significar identificar, entre os regentes de hoje, aquele cujas características sejam parecidas com as do velho mestre. Melhor talvez seja buscar alguém que, como ele, entenda o tempo em que vive e, ao mesmo tempo, saiba moldá-lo à sua imagem e semelhança.