Algures, numa das páginas densas que escreveu, o saudoso mestre que se chamou Temístocles Linhares afirma, com ênfase e com propriedade: “Temos que reconhecer: a nostalgia da infância é um elemento da grandeza do homem”. Infância: eis aí um tema eterno. Inclusive, na minha obra poética extensa, ela é um tema recorrente. E constitui, na opinião de outro mestre, Wilson Martins, o filão mais rico da minha poesia. Adiante. Como disse Worsdworth, repetindo o provérbio chinês, a criança é o pai do homem. E Antoine de Saint-Exupéry, num dos seus livros admiráveis, confessa: “Je suis de mon enfance comme d’un pays”. Penso que a tradução, no caso, é supérflua.
Sim: a infância talvez seja a pátria comum de todos os homens. De todos nós, sem exceção. E todos acabamos exilados desse país luminoso pelo decreto irrecorrível de um ditador de plantão. Que se chama Cronos. Mais conhecido pelo seu nome vulgar: Tempo.
A infância tem algo de território mágico, de província onírica, de região lúdica de cuja realidade só nos apercebemos, ai de nós, mais tarde, em caráter por assim dizer retrospectivo. Como quem olha para trás, longamente, através de um caleidoscópio irisado.
Talvez a vida humana fosse mais feliz e perfeita se Deus tivesse invertido a sua ordem natural: começando na velhice e acabando na infância. Só assim a gente conseguiria saboreá-la em toda a plenitude, com todo o encanto, com toda a fascinação que ela desperta em nós, quando é apenas simples mancha esbatida nos latifúndios longínqüos da memória.
Por isso, sempre que a nostalgia da infância me invade, espécie de coceira alastrando-se na epiderme translúcida da alma, eu viajo. Na noite de pedra, antracite e basalto, viajo. No trem infinito, no comboio de sonho, carruagens de luz, máquina de fogo, viajo. Vou cruzando pontes, atravesso túneis, vou serpenteando no verde dos campos, ladeando abismo, margeando cumes, dentro do trem de alumínio e espanto. Viajo, viajo. E o meu trem sem nome só vai onde eu quero. Ninguém mais conhece qual o país, a cidade, a estação onde ele vai parar. E é tudo tão simples nessa viagem! Basta-me sonhar. E eu sonho, se eu quero. Basta-me querer e o trem inicia a sua viagem lenta, vai ganhando velocidade aos poucos e logo atinge o ritmo dos carrosséis de antigamente – ó infinita floresta de cavalos de metal e vertigem!
Hoje decidi: o meu rumo é a infância. Digo ao maquinista do meu trem fantástico: vamos para a infância! Mas onde é ou que verdadeiramente é a infância? Será uma nação, uma cidade, uma sala, um quadro na parede – ou simplesmente um estado de espírito? Ou é apenas o som doce da voz de minha mãe cantando ou rezando nas tardes azuis e nas noites de cinza, a luz do olhar de meu avô fumando o seu cachimbo, o canto dos galos anunciando a aurora nas manhãs de cristal, a canção errante de uma ceifeira nos plainos de ouro dos trigais, o chiar melancólico dos carros de bois nas ladeiras íngremes do tempo?
Penso que a infância tem algo de uma peça de teatro: cenários de opereta, personagens vários, um enredo que vai se autoconstruindo aos poucos. Os personagens são impecáveis, nos gestos contidos, nas falas resumidas, nas interjeições breves. Há um menino, personagem central que eu mesmo represento, a mãe, o pai e o irmão, os avós, os primos, os colegas de escola, o professor José Ferreira Gonçalves e o padre Joaquim dos Santos Moderno (e nomeá-los torna-os mais presentes), e outros personagens menores, coadjuvantes subalternos na mecânica da peça.
Os cenários são simples: o casario do pequeno burgo medieval, a praça exígua, o chafariz de lábios de ferro, cantando sempre a mesma linfa pura, como a fonte de Rilke, a velha casa, pequena sacada e gerânios nas duas janelas, em cujos beirais as andorinhas faziam suas serenatas matinais e seus concertos vespertinos, a pequenina igreja branca (como podia o imenso Deus caber lá dentro, no sacrário minúsculo?), a escola de paredes exteriores sujas e entranhas limpas, reino do professor José de voz mansa e férula dura, para esquentar as mãos dos alunos rebeldes nas manhãs cinzentas com a neve caindo, lembrando a balada de Augusto Gil, que eu tenho a impressão de escutar agora, declamada, com sotaque beirão, pelo menino que fui, antigamente: “Batem leve, levemente,/como quem chama por mim./Será chuva, será gente?/Gente não é, certamente,/e a chuva não bate assim…/Fui ver: a neve caía,/do azul, cinzento céu,/branca e leve, branca e fria./Ah, que saudade, Deus meu!/Há quanto tempo não a via…” Ó pura, doce, última flor do Lácio de tantos sotaques – e sempre a mesma pura e doce língua!
Foi aí, nesse cenário limitado, que se desenrolaram dramas e comédias sem conta. Do meu trem de sonho, viajando à velocidade da luz (o pensamento é infinitamente célere!), eu vejo a peça como se ela fosse uma sucessão de quadros impressionistas ou aquarelas indistintas, uma rapsódia de canções alegres e tristes, uma suíte de trechos musicais. Tudo parece congelado: os personagens, eu próprio, menino implume, o movimento, as cores, os sons, os gestos de pantomima, as falas entrecortadas, os silêncios grávidos, sempre grávidos – de gritos. Da janela do trem, viajante insone, eu vou revendo essa peça estranha em que eu sou, a um só tempo, autor, espectador e personagem.
Infância: ó pura, inesquecível pátria de onde todos emigramos um dia, inexoravelmente! E como nos sentimos estrangeiros, longe dela…