Vento quente de ódio do enigmático Rubem Fonseca

“Põe a mão aqui no peito e vê como é duro. E o peito era duro, mais duro que os das meninas que eu conhecia”.

Linguagem simples, direta e crua na abertura do conto Fevereiro ou Março, do livro Os Prisioneiros, estreia de Rubem Fonseca, em 1963.

Hoje pode ser natural a qualquer um que escreve ou pensa que escreve, mas há cinquenta anos assustava ir direto ao assunto, sem preliminares.

Naquele tempo, escritores eram cheios de lero-lero, frescura estética, quando não recorriam a palavras que só os bisavós deles, um comendador Pitangueiras ou conselheiro Carvalho, gostavam, sem contar expressões que só o vaqueiro Totonho Jaboronha, do Vale do Jequitinhonha e mais ninguém falava, num dialeto gutural.

Até Jorge Amado resgatando expressões de bordéis, destoando e escandalizando os demais, padecia de verborragia barroca. Por isso, quando Os Prisioneiros veio a lume foi porrada na cara. Porrada era palavrão, vamos maneirar: soco na cara.

Em Lúcia McCartney, terceira antologia de contos de Fonseca, a garota de programa no conto homônimo diz: “Eu vou toda pra ele, me entrego, me dou, ele está dentro de mim, eu rezo pra demorar bastante, peço, demora bastante, muito, não acaba, ele me põe doidona, me derrete e meu coração fica batendo no peito, na garganta, na barriga, que-bom, quebom, que-bom, que-bom, que-bom!”.

Naquele tempo ninguém escrevia assim, nem Adelaide Carraro ou Cassandra Rios, rainhas da putaria literária. Mas Fonseca escrevia. Tratava erotismo sem meias palavras e violência com a cabeça de quem a praticava, como no conto O Desempenho: “Vento quente de ódio da corja que ria de me ver apanhando na cara – canalha de chupadores putos escrotos covardes – golpeio a cara de Rubão bem em cima do nariz, um, dois, três – agora na boca – de novo no nariz – pau, cacete, porrada – sinto o osso quebrando – Rubão levanta os braços para tentar impedir os golpes, sangue começa a brotar de toda sua cara, da boca, do nariz, dos olhos, dos ouvidos, da pele”. Ninguém escrevia assim. Nem antes. Nem depois.

José Rubem Fonseca, o enigmático JRF, nasceu dia 11 de maio de 1925, tem 84 anos, publicou 25 livros (11 romances e 14 livros de contos), teve estreia tardia em 1963, com Os Prisioneiros, mas valeu a pena esperar.

Em seguida vieram A Coleira do Cão e Lúcia McCartney. As três coletâneas de contos dos anos 60 garantiram lugar no panteão dos grandes escritores brasileiros. Ele ainda acertou em cheio duas novas coletâneas nos anos 70: Feliz Ano Novo e O Cobrador.

Antes, publicou o romance O Caso Morel. Não precisava mais. Mas foi em frente e ganhou prestígio e dinheiro, coisa boa. No entanto, a obra já estava formada, o resto foi musculatura.

Como escritor, além de reconhecimento crítico imediato antecedido de assombro, Fonseca ganhou prêmios internacionais como o Camões e Juan Rulfo, além de cinco Jabutis. Mineiro de Juiz de Fora, quieto, sempre faturando, do tipo que não perdoa: bola na rede.

Cultua extrema discrição na vida pessoal, ao lado de Dalton Trevisan, com quem forma dupla de área mortal no conto brasileiro no século 20. Não tem para ninguém. Nem quem conteste.

Assim como Trevisan, Fonseca desenvolve vasto conhecimento de tipos e situações, mas também revela repertório cultural, com incursões pela música, literatura, pintura, filosofia, às vezes medicina, revelando erudição sem pedantismo.

É um cara que fez quase tudo na vida, de ajudante de mágico, comissário de Polícia a executivo da Light, além de leitor voraz. Tudo isso deu munição. Ele usou, fez e aconteceu.

Depois de tudo feito e dito, parece que não tem nada novo a respeito de Fonseca. Com obra consolidada, glória conquistada, fama reconhecida e idade avançada, o resto, como diriam seus personagens cínicos, é esperar a dama de negro e partir com a certeza de missão cumprida para o último refúgio, aonde vão grandes e pequenos, vis e virtuosos, infames e heróis, sociólogos e metalúrgicos, famosos e obscuros. Mas Fonseca, como Trevisan, não deixa de bater ponto.

E acaba de lançar em nova editora mais um romance, O Seminarista (184 páginas, R$ 36,90),, que não está à altura de seus livros anteriores. Para encurtar a conversa, é a história de um matador profissional, que foi seminarista e não perdeu a mania falar latim. Não é mal; os anteriores é que são melhores. Mas, ainda assim, um acontecimento.

Fonseca é dos escritores brasileiros que mais transitou por editoras. Seus primeiros livros saíram pelas pequenas Olivé Editor e GRD (Gumercindo Rocha Dórea). Depois andou pela Artenova. Teve passagem pela Codecri (do jornal Pasquim, Codecri, sigla de Comitê de Defesa do Crioléu).

Como todo escritor de qualidade nos anos 70 saiu em capa dura pelo Círculo do Livro, mudou-se para a ascendente Nova Fronteira, e ficou bom tempo na Francisco Alves, de onde migrou com direito a tratamento vip para a coqueluche dos anos 80, a Companhia das Letras.

Deu cara de se aposentar por ali, quando, depois de 20 anos, faz belo acerto com a Agir (do grupo Ediouro, que manda brasa no mercado), com direito a R$ 1 milhão de adiantamento na algibeira e reedição da obra. Agora ressurge faceiro nas livrarias. Não é pouco.

Compreender esta trajetória é importante, O Seminarista se insere nela. O maior mérito do livro parece ser o de estreia em nova casa editorial. Ele não acrescenta vírgula a obra do escritor, praticamente consolidada a não ser que um espasmo tardio contrarie tudo.

A editora, sabendo disto, manda O Seminarista com os primeiros livros de Fonseca numa bela caixa, fazendo disto um acontecimento. O leitor encontra Os Prisioneiros (176 páginas, R$ 36,90) e Lúcia McCarney (240 páginas, R$ 36,90), há muitos anos ausente dos catálogos, além de pequeno volume com textos e fotos de Zeca Fonseca, filho do escritor, sobre o Rio de Janeiro.

Não deixa de ser um requinte, embora ocorra pequenos pecados para quem gosta de exatidão: a orelha do livro informa que o escritor publicou 11 romances e 14 livros de contos e um texto no mesmo volume contradiz, dizendo que foram 11 coletâneas de contos, sete romances e três novelas. Conta difícil de bater que uma simples revisão resolvia.

Mas também não é nada que atrapalhe. Só o fato de os primeiros livros virem a lume merece boa recepção porque continuam emblemáticos na literatura brasileira.

Embora o tempo seja os anos 60, a embocadura, o diálogo curto e grosso, certa desilusão, tudo aquilo que se anunciava nos anos 60 e 70 para o futuro, violência gratuita grassando no Rio de Janeiro, tudo virou rotina.

E, sem tradutor mais gabaritado que Fonseca. O Gênesis está em O Cobrador, de 1978, ainda não reeditado: “Eu não pago mais nada. Cansei de pagar!, gritei para ele, agora eu só cobro! Dei um tiro no joelho dele. Devia ter matado aquele filho da puta. A rua cheia de gente. Digo, dentro da minha cabeça, e às vezes para fora, está todo mundo me devendo! Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, dentes, estão me devendo”.

Vá discutir com um tipo deste. O Rio de hoje tá cheio de gente assim. Cobradores. Não vê quem não quer. Fonseca viu antes. Bem antes. Um profeta do apocalipse.

A Agir deu trato legal nos livros. Botou comentários de Sérgio Augusto no final, reproduz capas das edições anteriores, traz críticas da época, de Fábio Lucas e Wilson Martins.

Ou seja, contextualiza para o leitor ter noção do que foi a aparição do cara no cenário literário brasileiro. Para quem gosta de literatura, prato cheio. Desta vez, sem sustos. Afúria narrativa de Rubem Fonseca está de volta. Aos 84 anos, ele mudou de editora e terá seus melhores livros relançados

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