O norte-americano Ambrose Bierce (1842-1914), jornalista famoso pela sua irreverência viperina, e escritor que se notabilizou como autor de contos de horror algo satânicos, da linhagem de Edgar Allan Poe, foi sobretudo um satirista implacável, cuja metralhadora giratória não poupava ninguém.

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Cultivando permanentemente a ironia ácida e o sarcasmo contundente, cético e cínico, com uma tendência irresistível para um pessimismo algo mórbido, mas também capaz de exercitar o humor negro (ou branco), apolíneo ou dionisíaco, Bierce pertence a uma família ilustre que tem entre seus antepassados Swift e Voltaire. Isso para não falar dos quase irmãos que se chamaram Oscar Wilde, Bernard Shaw e H. L. Mencken.

Conhecido em vida como the bitter Bierce, o amargo Bierce, esbanjou talento na atividade jornalística, em cuja província fez de tudo, da reportagem ao editorial, da crônica do quotidiano à exegese política, da análise social à crítica literária.

Foi sobretudo um iconoclasta militante, sempre empenhado em demolir ou fustigar com o seu látego verbal acerbo políticos corruptos ou demagogos, administradores incompetentes na administração e competentíssimos nas suas falcatruas rapinantes, empresários desonestos, artistas medíocres, camelôs e charlatães da fé e, last but not least, poetastros.

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A síntese do seu pensamento e da sua cosmovisão crítica encontra-se no livro famoso, The devil?s dictionary (O dicionário do diabo). É desse dicionário que eu irei reproduzir alguns verbetes extremamente saborosos, que fui colecionando ao longo dos anos, extraídos de jornais, revistas e livros. (Curiosamente, nunca tive nas mãos o original ou a tradução do dicionário ambrosiano).

Aí vai, pois, uma série de verbetes em cuja textualidade se patenteia de modo claro a verve e o espírito cintilante do autor. Escolhi naturalmente aqueles que se me afiguram mais hilariantes ou significativos.

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 Como define Bierce o cérebro? Assim: ?Trata-se de um aparelho fisiológico com o qual nós pensamos…que pensamos?.

 E o que vem a ser, na sua concepção, um infiel? Bierce explica: ?Em Nova York, aquele que não crê na religião cristã. Em Bagdá, aquele que crê?.

 E o que é, pela peculiaríssima ótica de Ambrose, um aborígene? Ele responde, curto e grosso: ?Sujeito de valor reduzido que atravanca as terras recém-descobertas, mas que logo deixa de atravancá-las e passa a fertilizar o solo?. Jonathan Swift não diria melhor.

E como concebe ele a amizade? Com língua afiada e sabendo a fel, Bierce dá a sua definição cáustica: ?É um bote suficientemente grande para levar dois passageiros, quando faz bom tempo, mas só um, quando o tempo fica ruim?. Monsieur de Arouet assinaria em baixo.

Continuemos rindo com a leitura de outro verbete ? canibal: ?Gastrônomo da velha escola, que conserva os gostos simples e adere à dieta natural da época préporcina?.

Vejamos agora o verbete cultura: ?Aquela espécie de ignorância que distingue os estudiosos e intelectuais?.

Um conhecido, na opinião desassombrada do dicionarista e prestidigitador conceitual, nada mais é do que ?uma pessoa que nós conhecemos suficientemente bem para pedir-lhe dinheiro emprestado, mas não o suficiente para emprestar-lhe?. Shaw e Wilde endossariam a ?boutade?.

Já a meninice, vista pelos seus óculos de lentes escuras e irreverentes, é simplesmente ?aquele período intermediário entre a idiotia da infância e a loucura da juventude?. Flaubert adoraria.  

E o que é verdadeiramente um connaisseur? ?Especialista que sabe tudo sobre algo e nada sobre o resto?. É fogo, o amargo Bierce…

Agora, vejamos uma das mais pungentes definições do norte-americano. Ela está consubstanciada no verbete nascimento: ?A primeira e a maior de todas as desgraças que podem acontecer ao pobre ser humano?. Existe aí um eco nítido do verso de Camões: ?E sempre o mal maior é ter nascido?. Será que Bierce o conhecia? ?May be, may be not?.

Outra definição famosa é a que ele dá de patriotismo: ?No célebre dicionário do dr. Johnson, o patriotismo aparece definido como o último refúgio dos patifes. Permito-me fazer uma correção indispensável: não é o último, mas o primeiro?.Um verbete digno de La Rochefoucauld ou Chamfort.

 Finalmente, a super-hilariante definição de regaço: ?Um dos órgãos mais importantes do corpo feminino, providência admirável da natureza para o repouso das crianças, mas útil sobretudo em festas campestres, para suportar bandejas com frangos frios ou cabeças de marmanjos?.

Será preciso acrescentar algo mais? Penso que não. Temos aí o quantum satis. O bastante para o justo deleite do prezado leitor que me deu a honra da sua leitura.

João Manuel Simões é escritor.