Urubus

Um dia apareceu um médico lá no lixão. Apareceram vários médicos, ele lembra. Pros mais velhos, deram uns remédios. O Pai pediu dinheiro. Disse que não tinha como comprar remédio, que ele, o Tiziu, precisava. O médico deu o remédio, Pai continuou pedindo. O outro médico, esse que nunca tinha aparecido, era médico de olho. Foi ver, fazer exame. Todo mundo lá no lixão sofria, olho ardia. O vapor que saía do chão podre. O chão sobre o qual o Pai e a Mãe haviam erguido seu barraco. Um barraco dentre tantos outros construídos no lugar, cento e tantos barracos, todos com Pais e Mães dentro, com crianças dentro. O médico de olho examinou Tiziu. Tiziu era bem pretinho, preto da cor do passarinho. Tinha ganhado o apelido do vizinho, mais ou menos amigo do Pai. Lá no lixão todos conheciam Wanderley como Tiziu. Ele gostava disso, gostava de ser meio passarinho às vezes, de se imaginar menos gente do que era, saindo dali, daquele inferno de restos e de sujeira. Tinha um problema no olho, disse o médico. Tá tendo dificuldade na escola? Tiziu confirmou. Não que estivesse tendo, para a escola nunca tinha ido. Ficou com vergonha de contar que os pais precisavam dele na catação. Que por isso não ia para a escola. Ficou com vergonha e meio com medo de discordar do médico. O médico perguntou meio já contando. O médico lá, branquinho, a roupa bem branquinha. Suava muito, o médico. Calorzão de meio de janeiro. Temporal vindo. Concordou então. Recebeu do médico um óculos. Já feito, colocou na hora. Começou a ver diferente. A enxergar o que antes não via. Ver umas coisinhas, uns pedacinhos que antes não enxergava. Viu na roupa do médico as letrinhas com o seu nome. Viu o Pai perto, viu como o rosto do Pai era diferente do rosto do médico. O médico suava, a fuligem das fogueiras do lixão grudavam no suor do médico. Formavam no rosto e no pescoço dele uns riscos meio cinzas, umas tiras de sujeira. O Pai era todo sujeira já. Tiziu ainda não havia se enxergado. Imaginou que fosse como o Pai, todo sujeira também. Aquilo fez com que ele ficasse com uma vergonha danada, com um medo até que o médico levasse ele embora. Com o óculos, com a visão nova, saiu de fininho, foi se esconder, foi para trás do barraco, esperar que toda aquela gente fosse embora.

Agora de óculos seu mundo estava diferente. Ele percebeu que todos os pedaços de papel, percebeu que alguns pedaços de plástico tinham, além das cores que ele já enxergava, desenhos, figuras, letrinhas. Pela primeira vez, ficou com vontade de ler aquela quantidade de letrinhas que apareciam nos restos de papel. Via as figuras, achou bonitas algumas figuras que viu. Num pedaço de jornal, na ponta de uma folha, uma foto de uma jogador marcando um gol. Viu tudo na foto, as listrinhas do uniforme, até a cara de esforço do jogador, os olhos do jogador estavam lá. Via tudo, tudo. Sorriu com a novidade. A quantidade de coisas que ia enxergar agora, imaginou. Olhou pro chão, queria ver se achava outras figuras, outro desenhos. Enquanto procurava, um barulho chamou a sua atenção. Barulho de bicho, um barulho que ele conhecia bem, um soprado, o barulho que o Pai fazia antes de escarrar. Um barulho de urubu. Dois urubus brigando pelos restos de um gato morto. Tirando do gato inchado a barrigada toda. A barrigada ia saindo como uns fios, uns barbantes azuis escuros de dentro do gato. O fedor do gato se confundia com o fedor do lixão. O fedor do lugar onde Tiziu morava. Tiziu percebeu que o óculos, que deixava seu mundo um pouco mais bonito, mais cheio de figuras, de desenhos, não mudava o cheiro das coisas. Não mudava o cheiro do lixão. Pensou, devo estar cheirando errado, estava vendo errado antes, só pode. Deve existir algum tipo de óculos para cheiro, talvez por isso tanta gente agüente esse fedor daqui. O fedor do lixão, um fedor sólido que cresce com o calor, que até cor tem. Olhou novamente os urubus brigando. Olhou, pela primeira vez na vida, a cara dos urubus. Os detalhes da cara enrugada e preta das aves que viviam no lixão. E viu os olhinhos dos bichos. Bem pretos, da cor da cara do pássaro. Até aquele momento, ele achava que urubu não tinha olho. Agora via lá, os olhinhos, perdidos no preto das rugas do bicho feio. O urubu maior agarrou a tripa do gato, as asas abertas. O menor, o que disputava, saiu de lá. Tiziu imaginou no urubu menor uma certa cara de derrota. Enxergou no urubu maior uma satisfação de vitória, enquanto o bicho, as asas abertas, engolia de uma vez só a barrigada do que antes já havia sido um gato.

O urubu, as asas abertas, olhou para Tiziu. Tiziu sempre andava com um pedaço de pau na mão. Um meio cabo de vassoura. Para tocar os cachorros e os urubus que disputavam com eles, com os moradores do lixão, o restos da catação. Os melhores restos. Os restos que eles vendiam para os criadores de porcos da região. O lixo que virava lombo. Um ano, no Natal, o Pai tinha ganhado de um dos criadores um leitão. Tiziu Nunca tinha comido carne assim, só pedaços que ele achava no lixo e que o Pai dizia que não estavam podres, que dava para comer ainda. Aquele dia, eles comeram o leitão quase inteiro, passaram mal depois de tanto que comeram. Dias depois ainda comeram a mesma carne, que começava a ficar com cheiro das outras comidas que achavam por lá. Do porco não sobrou nada. Consumiram no lixão o porco feito de lixo. Os urubus comiam tudo e nunca passavam mal. Tiziu achava que era porque eles não viam o que comiam. Porque não tinha olho. Viu agora que não era por isso. O urubu grande olhando, deu dois, três pulinhos, um luf, luf das asas, saiu voando. Tiziu viu como ele foi subindo, subindo, sem bater as asas grandes, pretas, enormes. Foi, assim, sendo erguido pro alto, sem muito esforço, subindo com o vento, com o cheiro que saía do chão imundo. Tiziu percebeu que o urubu, à medida que subia, continuava olhando para baixo. Olhando para o chão. Olhando para ele, lá, preso no chão. Preso no meio do lixo. Tiziu ficou com inveja do urubu.

Tiziu tinha ficado com inveja da irmã menor. Não lembrava mais o nome dela. Lembrava da barrigona da Mãe, lembrava do Pai dizendo que ele ia ganhar um irmãozinho, ou uma irmãzinha. Nasceu um dia, lá no lixão mesmo. Uma vizinha de barraco ajudou. Tiziu assitia tudo, via tudo o que conseguia ver pelas frestas do barraco. Mais ouvia do que via, ouvia os berros da Mãe. Achou que a Mãe ia morrer aquele dia, tanto que eram os berros. Ficou lá fora, imaginando o que iam fazer com a Mãe se morresse. Ficou com medo que deixassem a Mãe lá no lixão, como ficavam os cachorros e cavalos que serviam de comida aos urubus. Os urubus sempre apareciam quando ouviam barulho de dor, Tiziu já tinha percebido isso. Ele lembra do cavalo que apareceu, o osso da perna saltado para fora. Urrando, relinchando. Os urubus foram chegando, chegando, o cavalo ainda de olhos abertos quando o primeiro urubu furou a barrigada. Abriu o bicho. Os urubus foram comendo o cavalo ainda vivo, comendo a dor do cavalo. Aos poucos a Mãe foi gritando menos. Quando Tiziu achou que ela tinha morrido, porque tinha parado de gritar, ouviu a voz da Mãe falando. Ouviu uma voz tranqüila como nunca antes tinha escutado. Ouviu um gritinho forte também, um chorinho. O choro do neném que tinha acabado de nascer.

A assistente social chegou no dia seguinte. Perguntou, aonde tá o neném que nasceu? Tiziu não imaginava como ela podia saber. Imaginou que era alguma coisa com os urubus, que ficaram em volta do barraco no dia anterior. Sempre os urubus. Com os cachorros até que se entendia. Ficava amigo de um ou outro, dividiam até comida. Até com as ratazanas o problema não era maior. O problema era mesmo os urubus. Os urubus ficavam acima de tudo, vendo tudo. A assistente social chegou com a polícia. Quem vinha de fora do lixão sempre chegava com a polícia. Entrou no barraco, falou rápido com a Mãe. Escutou a Mãe chorando, a assistente social falando rápido, no começo uma voz calma, depois uma voz nervosa. Escutou o choro da irmãzinha. Depois viu a assistente social levando embora dali a criança. O neném não chorou mais, foi no carro com a moça e com a polícia, enroladinha num cobertor. A Mãe gritava de dentro do barraco. O Pai encostado na parede do casebre, sentado, mão na cabeça, olhando para baixo, xingando a vida, a polícia, o mundo, a cachaça, xingando e chorando. Os urubus em volta. Os vizinhos em volta, os vizinhos assustados. Os urubus não sentiam medo nem pena. Assim que o choro passou, voaram embora. Foram lá para o alto, ficar vendo o que acontecia.

Tiziu ficou olhando para cima, vendo o urubu se afastar no céu. Ficando cada vez menor, menor. Tiziu sentira inveja da irmã, que tinha conseguido sair dali, do lixão, daquele inferno. Sentiu inveja da irmã que não viveria a vida que ele levava agora, que iria morar do lado de fora, na cidade, onde as pessoas normais moravam. Agora Tiziu sentia inveja dos urubus também. Dos urubus que viam tudo de cima, que enxergavam tudo lá do alto. Que alçavam vôo quando precisavam, que comiam o que queriam. Que dormiam aonde queriam. Que enxergavam tudo e não faziam nada. Que viviam como viviam as pessoas da cidade. Sem se preocupar com Tiziu ou com aquela gente, que acordava e dormia no fedor, na morte, no inferno. Que não sentiam nada por aquela gente que sobrevivia sem jamais ter vivido.

Aristides Athayde é advogado, professor de Direito Internacional da Faculdade de Direito de Curitiba, mestre pela Northwestern University Chicago, Former Chairperson da Câmara de Comércio Brasil EUA (AMCHAM), membro da Câmara de Comércio Franco Brasileira e da ICC International Chamber of Commerce

aristides@aristidesathayde.com.br

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