Universal lança primeiro registro autorizado de disco de Coltrane

?Como você se chama?

– John Coltrane.

– Coltrane? Que nome esquisito!

John permanece imperturbável.

?Diga-me, então. Você fumou?

– Não.

– Injetou coca?

– Não.

– Então heroína?

– Não.

– Você não tomou nada?

– Não.

– Então, como você consegue tocar deste jeito??

Este diálogo entre Coltrane, 19 anos, e o trompetista Cal Massey, de 17, aconteceu em 1945, quando num finalzinho de baile, Coltrane soltou-se num solo atrevido e inovador. Provavelmente ele pouco ficou ?limpo? a vida inteira. Mas manteve a magia de causar o mesmo impacto ainda hoje, a 39 anos de distância de sua morte. Como um sujeito pode fazer um improviso de mais de 20 minutos – sendo que pelo menos 16 deles acompanhado apenas por uma bateria -, e ainda assim não deixar o clima cair? Pelo contrário, Coltrane vai num crescendo poderoso envolvendo a tudo e a todos naquele botequinho de quinta categoria chamado Half Note, em Nova York, onde o tablado era feito de outdoors velhos de Coca-Cola. O pequeno público que se espremia se levantou a certa altura. Dá até para imaginar o momento em que isso ocorreu, provavelmente lá pela casa dos 11 ou 12 minutos da performance, quando Elvin Jones mergulha de cabeça no delírio modal de Coltrane e os dois iniciam uma alucinada e maravilhosa viagem sonora.

Tudo isso se refere apenas a One down, One up, uma das faixas do álbum duplo Live at the Half Note, que depois de muitos anos circulando de forma precária em porcas gravações piratas ganha agora seu primeiro registro autorizado (Universal) com som decente, feito a partir de um teipe do próprio Coltrane só há pouco encontrado. É uma daquelas gravações míticas da história do jazz – no mesmo patamar, por exemplo, dos 27 choruses improvisados por outro tenorista, Paul Gonsalves, com a big band de Duke Ellington no Festival de Newport de 1956.

O quarteto, um dos mais brilhantes de todos os tempos, reunia, além de Coltrane, o pianista McCoy Tyner, o contrabaixista J Kimmy Garrison e o baterista Elvin Jones. O duplo registra uma das noitadas de março de 1965 no Half Note e só contém quatro faixas (Afro blue, Song of Praise e a conhecidíssima My favorite things). Mas é tão iluminada a performance de ?One down, One up? que as outras empalidecem. O quarteto se separaria no final daquele ano – e Coltrane partiria para o free desenfreado em seus últimos 24 meses de vida. ?One Down, One Up? registra o exato momento em que a improvisação modal de Coltrane começava a perturbar-se pela contaminação com o free – daí a fascinante escapada da dupla Coltrane/Jones em relação aos parceiros.

O tema compõe-se de poucas notas, uma célula melódica inofensiva. Em vez de usar um bisturi, Coltrane apossa-se dele com fúria, revira-o, esgota-o. Há uma postura reiterativa hipnótica – provavelmente isso fez o público levantar e ouvir os 10 minutos finais com as mãos para cima, em atitude quase religiosa, conta o ótimo texto do folheto interno assinado por Ashley Kahn.

E a bateria polirrítmica de Elvin Jones é um caso à parte. Ele foi o primeiro a radicalizar o toque hard dos anos 50 de Art Blakey. Na verdade, seguindo nisso o líder dos Jazz Messengers, Jones liberta a bateria, que em definitivo deixa de ser mera coadjuvante, para se transformar em uma voz ativa no grupo. Deixa, assim, a cozinha e ganha maioridade. Jones sola o tempo todo – não importa que solo role a seu lado. McCoy Tyner, aliás, também faz isso, embora em menor proporção.

A pianista Carla Bley gosta de dizer que suas composições são ?como desenhos a crayon que os músicos colorem à vontade?. Até Coltrane isso até pode ser verdadeiro. Mas ele não apenas colore. Inclui novas linhas, apaga as originais, empreende uma odisséia encantatória que pede – e conquista – a comunhão com qualquer platéia. Inclusive a do CD e do iPod.

Estudiosos da nova safra acadêmica norte-americana dedicados ao jazz já escreveram que é perigoso limitar a história do gênero à sucessão das grandes gravações ao longo do século, desde a célebre West End Blues, de 1928, de Louis Armstrong. Todo mundo tem sua listagem de indispensáveis, do Kind of blue, de Miles Davis, ao Köln concert, de Keith Jarrett.

Mas de que outro modo encarar um gênero em que importa a performance? Em que o improviso ou composição instantânea é a alma? Os 12 brevíssimos segundos do trompete de Armstrong a capela de 1928 são tão mágicos quanto os 16 minutos do duo(elo) Coltrane/Jones. Daí a permanência do jazz. Daí a modernidade que exala este inacreditável One down, One up, quase 41 anos depois de ter sido captada.

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