São três casais que não se conhecem e, de repente, se encontram no consultório da terapeuta que atende a todos. O horário é da sessão habitual, mas a psicóloga não aparece, apenas deixou a sala preparada para recebê-los com um pequeno bar onde não falta uma boa bebida e uma mesa com envelopes, contendo instruções de como eles deverão conduzir essa sessão. “É o ponto de partida para situações inusitadas”, comenta Antonio Fagundes, que protagoniza Baixa Terapia, comédia que estreia na sexta-feira, dia 17, no Tuca, na zona oeste da capital paulista.
Escrita pelo argentino Matías Del Federico, a peça reúne parceiros de distintas características – se um dos casais considera o matrimônio um permanente campo de batalha, o outro vive sob uma falsa tranquilidade, embora eternamente assombrado pelo fantasma da turbulência. “Nenhuma relação é perfeita. Tanto que levantamos quase 20 tópicos descobertos no texto, detalhes que cutucam a plateia”, conta Fagundes que, curiosamente, forma um dos casais, o mais maduro, com sua ex-mulher, a atriz Mara Carvalho.
A coincidência continua quando se nota que a dupla mais jovem é formada pelo seu filho Bruno Fagundes e por sua atual companheira, Alexandra Martins. Não bastasse isso, o texto foi traduzido por Clarice Abujamra, ex-companheira de Fagundes. Finalmente, a trinca é completada pela notável comediante Ilana Kaplan e Fábio Espósito, que formam o casal do meio. “São três gerações de atores em cena, o que permite observar um pequeno mas interessante contraste na forma de interpretar”, conta Fagundes, que já soma mais de 50 anos de carreira.
Se cada casal traz um problema distinto para resolver na terapia, agora todas as questões têm de ser resolvidas em grupo. E, como cada envelope deixado pela psicóloga promove uma situação mais engenhosa que a outra, a sessão se transforma em um caos hilariante. “E o final ainda é surpreendente, vai deixar muita gente boquiaberta e pensativa”, diverte-se Fagundes, sem alimentar o spoiler. Foi dele a escolha da peça, depois de assistir a uma montagem em Buenos Aires. “Fiquei tão empolgado que, no dia seguinte, já entrei em contato com o autor.”
Como Del Federico não vive em Buenos Aires, a conversa prosseguiu por meios eletrônicos, até que o argentino veio a São Paulo, onde viu Fagundes pai e filho em cena, no espetáculo Vermelho. “Nossa primeira conversa pessoalmente confirmou a empatia que já existia artisticamente”, conta Antonio.
O ator já desejava voltar à comédia, gênero que não exercitava desde 2005, quando encenou As Mulheres da Minha Vida, deliciosa ironia dramatúrgica do americano Neil Simon, peça com ecos de Seis Personagens à Procura de um Autor, do italiano Luigi Pirandello. “Fazer rir é a mais difícil das artes de interpretar – por isso que os poderosos não gostam de comédia, pois ela desmascara o poder”, atesta Fagundes. “E Baixa Terapia alcança esse objetivo de forma catártica, justamente a proposta que mais me interessou, tratando as relações pelo aspecto social e psicológico.”
A peça do escritor argentino reverencia a tradição da comédia de costumes descascando sem dó nem piedade as mais caras ilusões sobre a cordialidade da “civilização ocidental”. Afinal, todos ali buscam solução para seus problemas que, se inicialmente são negados ou estão escondidos, aos poucos acabam escancarados, promovendo a popular “lavagem de roupa suja”. “O mais interessante é que o texto de Matías não escorrega para a facilidade, mas faz o bom uso da palavra, transformando os diálogos em verdadeiros desafios para os atores.”
Portanto, era preciso o comando de um diretor experiente, que tanto transitasse bem na comédia como conseguisse tirar proveito dos atalhos semânticos da peça. Fagundes encontrou tudo isso em Marco Antonio Pâmio. Além de conhecer todos os caminhos da arte da interpretação, Pâmio especializou-se em tradução, conseguindo manter a essência original dos textos mais intrincados. E, de quebra, já desenvolve uma sólida carreira como encenador. “Assisti à peça Playground, dirigida por ele, e fiquei muito bem impressionado”, conta Fagundes.
“O que mais me atrai no texto de Baixa Terapia é a presença de várias camadas em sua narrativa”, conta Pâmio. “Ele pode parecer, numa primeira leitura, apenas mais uma comédia sobre vários conflitos de casal. Mas é muito mais do que isso. Pois além de trazer à tona questões pertinentes e reconhecíveis a quem vive a condição de ser casado, a ação – fundamentalmente verbal – envolve e conduz o espectador a um desfecho surpreendente. É como se o autor nos provocasse o tempo todo através da gargalhada para depois nos fazer repensar sobre o que acabamos de assistir.”
Baixa Terapia é escancaradamente uma comédia, gênero desejado por Fagundes depois de duas fortes experiências cênicas: Vermelho, de 2012, drama que questiona a visão artística a partir da obra do pintor expressionista Mark Rothko, e Tribos, narrativa agridoce, montada em 2013 e que revelava a rotina de uma família disfuncional. Em ambas, havia sorrisos, algumas vezes risadas, mas o drama prevalecia. Em ambas também, os Fagundes pai e filho dividiam o palco. Mas, muito além da rica experiência artística, sobressaiu uma forma de trabalho que se confirmou um sucesso.
Ao contrário da grande maioria das produções, Antonio e Bruno abriram mão de convênios e patrocínios conquistados via renúncia fiscal e montaram uma cooperativa que bancasse todos os custos. Com isso, a produção tornou-se espartana e novas formas de atrair público foram criadas, como os ensaios abertos e a possibilidade de se conhecer o camarim antes do espetáculo, o que continua em Baixa Terapia.