O jornalista Artur Xexéo em seu blog em O Globo tem uma seção chamada A Música da Semana, que abriga canções que marcaram o colunista. São algumas pérolas dos últimos 60 anos, apresentadas como ‘seleção musical ao gosto do blogueiro’.
Ali se encontram Jack Lemmom cantando Let’s fall in love, num disco de 1954, a Doris Day na agradável versão de Cheek to Cheek, de Irving Berlin, do musical O Picolino (Top Hat, 1935), com Fred Astaire e Ginger Rogers.
Há ainda interpretações interessantes de Marilyn Monroe, Brigitte Bardot, Leny Andrade e Agostinho dos Santos. O mais curioso é que estas versões não se encontram no turbilhão do youtube que abriga um universo sonoro, o que torna a pequena seção de Xexéo bela oportunidade, sempre com comentários pertinentes e esclarecedores.
É um exemplo de como um simples blog pode ser informativo e não bacamarte a disparar bobagens e fantasias. Mas isto é outra história. Chama atenção a interpretação de Doris Day para Cheek to Cheek, música que é a cara de Fred Astaire depois do número de dança vaporosa no filme, embora sujeitos como Frank Sinatra e Louis Armstrong tenham dado conta do recado com a composição.
Doris simplesmente nos faz esquecer Astaire por alguns minutos e pensar como era boa cantora, tão boa que foi a única a ter papel musical de relevância cantando num filme de Alfred Hitchcok, O homem que sabia demais (The Man Who Knew Too Much, 1956), embora, para não perder o hábito, há uma tensão enquanto ela canta – tudo aquilo faz parte de artimanha para descobrir o autor de um sequestro. Whatever Will Be,Will Be (Que será, será) não só virou hit daqueles anos como, de quebra, levou o Oscar de melhor música original de 1957.
Mas, claro, depois que Doris termina, de cantar não tem como não rever Astaire e Ginger mais uma vez. O filme é de simplicidade brutal como a maioria dos musicais, um roteiro que serve apenas de pretexto para se cantar e dançar.
A dupla do filme influenciou até o mestre Federico Fellini, que fez Ginger e Fred em 1986, com Marcello Mastroianni e Giuletta Masina. É espantoso depois de todas as novidades tecnológicas e novos produtos de reprodução de mídia após a Era do Rádio, como algumas preciosidades do período -como os musicais – mantêm o frescor.
Cheek to Cheek ainda hoje é legal. Como as óperas. Por falar nisso, os musicais do cinema parecem ser herdeiros populares das óperas, uma adaptação simplória para uma nova forma de difusão sonora.
Mantém o velho esquema, uma história para sustentar uma cantoria – na ópera a cantoria é o tempo inteiro. O cinema esperto se livrou da carga dramática da ópera.
O resultado é que a fórmula deu certo e os musicais foram se adaptando com os anos. Um exemplo mais recente é Moulin Rouge (2001, de Baz Luhrmann, com Nicole Kidman).
Sinal de que sempre terá alguém para admirar um sujeito ou uma dona cantando, enquanto se desenvolve uma história de amor – ou sofrimento qualquer.
Como as histórias destes filmes eram simplórias os grandes estúdios investiam na coreografia dos números musicais. Alguns são uma obra à parte dentro filme, números cuja montagem custosa envolve recursos que daria para fazer um filme barato.
Os musicais criaram conceitos nestes números que vieram a ser avós de tudo o que veio depois unindo música e imagem, dos vídeosclipes a propaganda. Não há país com uma cinematografia razoável que não tenha pelo menos um par de musicais na algibeira. Afinal, basta ter uma câmera na mão e um sujeito cantando na esquina que temos um musical.
A Alemanha dos anos 20 foi pródiga no estilo e lançou as bases de grandes musicais com Renate Muller (Die Privatsekretärin, 1930 eViktor und Viktoria, 1932) e Marika Rökk (Hallo Janine!, 1939 e Die Frau Meiner Träume, 1944), entre muitos outros.
O velho esquema historia fuleira com musica maneira foi fazendo sucesso. A Espanha fez seus filmes aproveitando talentos vocais de Joselito e Marisol, o México usou os vozeirões de Pedro Infante, que fez 60 filmes até sua morte aos 40 anos em acidente aéreo e de Antonio Aguilar, que fez 167 filmes.
A Argentina e o Brasil não deixaram de recorrer a Carlos Gardel e Roberto Carlos para produzirem musicais, seguindo a fórmula que Elvis Presley levou à exaustão nos Estados Unidos, fórmula que atraiu Beatles e outras bandas.
No caminho os musicais foram incorporando produções pop vindas do teatro, como Jesus Christ Superstar (musical rock de Andrew Lloyd Webber, 1970), Hair (James Rado e Gerome Ragni, 1967) e Tommy (Ken Russel, 1975).
E filmes como Nos Tempos da Brilhantina (Grease, Randal Kleiser, 1978) e Flashdance (Adrian Lyne, 1983), sem contar claro Mary Poppins (Robert Stevenson, 1964) e Noviça Rebelde (Robert Wise, 1965).
Até na Índia os musicais pegaram em cheio. Na Itália ficaram famosos os filmes de Giani Morandi – In Ginocchio da te (1964), Non Son Degno di Te (1965) e Se Non Avessi Piu Te (1965).
Dio, Come ti Amo (de Miguel Iglesias, 1966) com Gigliola Cinquenti foi garantia certa de salas cheia nos lugares mais longínquos do interior do Brasil. Foi assim no Japão e também na Índia. Um bom filme indiano tem que ter boa musica e saracoteio de quando em quando.
Algumas produções levam nomes como Pyaasa (1957) e CID (1960) e trazem clássicos como Sar Jo Tera Chakraye e Ye Hai Bombay Meri Jan, interpretadas por Johnny Walker, nome artístico de Badruddin Jamaluddin Kazi, mas, eventualmente, dubladas por Mohammed Rafi.
O nome de Walker surgiu em um teste para imitar bêbado. O cara se saiu tão bem que o acharam a própria garrafa de uísque escocês. O comediante atuou em mais de 300 produções de Bollywood.
O recurso de dublar músicas em filmes é mais comum que se pensa. Ocorre com Marilyn Monroe em Quanto Mais Quente Melhor (Some Like It Hot, Billy Wilder, 1959) e é abordado no célebre Cantando na Chuva (Singin’ in the Rain, Stanley Done e Geny Kelly, 1951), com Gene Kelly.
Embora sejam filmes de concepção aparentemente simples, alguns musicais costumam ser extremamente cansativos para os atores. Nicole Kidman quebrou uma costela no esforço de dançar de acordo com a música.
Ginger Rogers atribuiu anos depois a sua instabilidade matrimonial, casou cinco vezes, ao ritmo estafante de ensaios, especialmente sob o perfeccionista e rigoroso Astaire.
A atriz costumava dizer que o marido de plantão sabia com quem estava trabalhando quando chegava em casa. Se estivesse inteira era com o tirânico Astaire e se cheia de hematomas era com o truculento e também genial Gene Kelly. Chegava cansada e sem tempo para marido algum.
O certo é que musical tem seu charme e poucos resistem a ele, talvez seja o gênero que amplia a distância entre leigos e intelectuais – os primeiros adoram e os segundo costumam não se interessar.
Ainda que tenha quem torça o nariz para o gênero, ele conquistou platéia. Ouvir música exige apenas uma habilidade: que o sujeito tenha boa audição. Quem vai a um musical não quer discutir relações afetivas neuróticas ou temas morais complexos, quer se divertir um pouco.
E divertir um pouco é coisa que todo mundo quer, pelo menos algumas horas por semana, depois de dias de trabalho. Assim, não seria surpresa que os musicais sobrevivessem aos suportes que lhes deram prestigio. É o que se deduz ao ouvir Cheek to Cheek no blog do Xexéo.