Uma autora chamada Didi

O teatro paranaense começou a ganhar densidade e se firmar profissionalmente na segunda metade do século passado, com uma geração conhecida como a dos “anos dourados”, formada entre outros por Ary Fontoura e Armando Maranhão, Nitis Jacon, Odelair Rodrigues, Lala Schneider e a dramaturga Didi Fonseca. Naturalmente, muitos outros nomes vieram a enriquecer o teatro paranaense, mas este grupo com figuras ainda atuantes, como Nitis, Odelair, Ary Fontoura e Lala Schneider, representou uma referência nas artes cênicas do Estado.

Se muitos integrantes do grupo ainda atuam, Didi Fonseca, nascida em 1915 em Morretes, morreu em 1994, mas deixou uma obra teatral que, no mínimo, serve de referência para um estudo da dramaturgia paranaense no século XX. Aliás, a sua obra tem sido objeto de pesquisa, como a desenvolvida pela professora Maria Cristina de Souza, do Centro Federal de Educação Tecnológica do Paraná e doutora pela Universidade de São Paulo. Em edição limitada, quatro textos de Didi Fonseca foram reunidos no livro Festival surrealista, pela gráfica do Cefet, cuja última edição é de 2001. Didi, na realidade Adayr Nascimento, e sua geração tem o grande mérito de profissionalizar o teatro paranaense, dar a este teatro uma nova dimensão. É impossível falar sobre o teatro paranaense sem tocar nos nomes que pertenceram á geração dos anos dourados.

Como autora, Didi Fonseca publicou, em 1953, em Dionysos, pelo Serviço Nacional de Teatro, a peça Atire a primeira pedra. Posteriormente, o Grupo do Teatro de Estudante do Paraná estreou em 1956 Uma autora em busca de personagens, no Teatro Guaíra e, no ano seguinte, a peça foi apresentada no Teatro Dulcina, no Rio de Janeiro, com colaboração do diretor Armando Maranhão. Festival surrealista, que dá nome ao livro, é uma peça em três atos em que cada ato pode ser apresentado como uma peça independente. Estes atos recebem os títulos de A morta, Escola para mulheres e Nasceu um Velho. As três peças restantes reunidas no livro são Descerrando a cortina (drama em três atos), Alda (comédia em três atos, feita em homenagem a atriz Alda Garrido) e Atire a primeira pedra. Além de suas peças, Didi Fonseca também escreveu livros de poesia e romances.

Paródia e surrealismo

Uma das primeiras observações que se pode fazer das peças de Didi Fonseca é a tendência para a paródia e a construção de um ambiente nonsense, que se aproxima do surrealismo. Em suas peças encontram-se elementos até grotescos, sendo possível estabelecer um paralelo entre o ato A morta, de Festival surrealista, com a peça homônima do escritor modernista paulista Oswald de Andrade. Os diálogos são cortantes, quase anárquicos, não há aprofundamento psicológico. A conversa muda de uma mentira contada por uma personagem, para ironias de uma outra, alterando o senso de realidade. O grotesco e a paródia adquirem em Didi Fonseca uma função cômica, o objetivo final é o riso.

E a busca do riso a difere da intenção de Oswald de Andrade. No escritor e dramaturgo paulistano, tanto o grotesco, quanto a paródia têm um sentido intencional de provocação, de desenvolver comparações estéticas e culturais, uma preocupação em romper o casulo do atraso em que se encontrava a cultura brasileira em relação à Europa. Em Didi Fonseca procura-se um outro aspecto destacado por Mikhail Bahktin, o riso, para se esquecer a realidade oficial. É o que se pode deduzir de uma outra peça sua, Uma autora em busca de personagens, em que propõe personagens históricos que não são os personagens históricos e levam os nomes de Romeu, Napoleão, Penélope em uma estrutura de quase dramalhão mexicano, conseguindo com isso um clima de excessos próximo ao barroco.

Poder-se-ia dizer que Didi Fonseca se aproxima do aspecto carnavalesco ao propor por alguns instantes o esquecimento da realidade, em troca de uma outra. Oswald, entretanto, apresenta a autofagia para propor um atalho e encurtar a distância cultural entre Brasil e Europa. Didi Fonseca faz a paródia para que dela se ria. Ao recorrer a esta paródia, ela pode se aproximar em gênero de Oswald de Andrade. O mesmo ocorrendo quando a dramaturga paranaense se afasta de um modelo naturalista de encenação, se aproximando de uma estética mais próxima do surrealismo. Assim, pode-se dizer que a paródia e o surrealismo são inicialmente dois pontos de convergência entre o escritor paulista e a dramaturga paranaense.

Os universos de Didi Fonseca e Oswald de Andrade podem possuir uma ligeira simetria, mas ao mesmo tempo em que podem se tocar, se distanciam, em função de uma força geográfica e estética que os colocam em pólos distantes. Oswald de Andrade é um homem com preocupação política, cultural e revolucionária. Didi Fonseca, uma senhora de aparente perfil tradicional, sem engajamento político ou revolucionário e cuja obra não propõe uma ruptura de vanguarda, seja estética, política ou cultural. Mas, ao mesmo tempo, ambos, cada um em seu território, se tocam em temas comuns ao procurarem modelos alternativos, caminhando em uma direção muito parecida, a de uma cena não realista.

Em Oswald esta realidade se apresenta com a força do deboche, do escárnio, da provocação política. Em Didi Fonseca há um clima de estranhamento em um ambiente doméstico. Pode-se dizer que Oswald de Andrade optou por um macrocosmo, pelo universo, e Didi Fonseca pelo microcosmo, pelo ambiente familiar, das pequenas mentiras, das piadas apresentadas em um tom de seriedade que lhe conferem seriedade quando na realidade são meros chistes. É uma paródia de uma piada, dentro de uma peça que parodia a realidade. Oswald, ao contrário, esbraveja violentamente contra uma sociedade reacionária, tomando por modelo as cidades européias em que os movimentos culturais pipocavam sucessivamente nas primeiras décadas do século XX.

Didi Fonseca provoca com sutileza a sociedade em que vive com chistes bem dosados. E não poderia ser diferente, uma vez que os dois dramaturgos viveram em espaço, tempo e sociedades diferentes e reagiram de acordo com suas sensibilidades nas ousadias surrealistas a que se propuseram. E não se deve esquecer que a peça de Didi Fonseca, apesar de não existir registro da época em que foi escrita, certamente é posterior à de Oswald de Andrade e os conflitos ocorrem em uma sociedade ainda mais conservadora que a do escritor paulistano.

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