No meu tempo de criança, a grande expectativa da garotada, nessa época de Natal, eram os almanaques de final de ano. Edições volumosas, caprichadas, de capas cartonadas, algumas cheias de cores, com um mix dos principais personagens dos quadrinhos. Tinha o Almanaque do Tico-Tico, o Almanaque do Gibi Mensal, o Almanaque do Globo Juvenil, o Almanaque do Tarzan, do Zorro, de Tom & Jerry, do Pato Donald e por aí afora. Os felizardos recebiam as preciosas edições na noite de Natal, debaixo do pinheirinho, entre os demais presentes; os menos afortunados, tinham de esperar pelas trocas durante as matinês cinematográficas dominicais. Mas, no fim, todo mundo ficava feliz da vida.
Hoje, as coisas são diferentes. As editoras de gibis, de olho nas tiragens, não têm mais se preocupado com os álbuns de fim de ano, nem mesmo acham a época tão especial. Por isso, vulgarizaram os almanaques, que passaram a ser quase mensais, nem nenhum encanto especial.
Mas sempre haverá exceções, felizmente. Para os fãs de quadrinhos de boa qualidade, com arte e conteúdo, acaba de chegar às bancas e gibiterias uma Edição Histórica do Surfista Prateado, reunindo as seis primeiras aventuras do super-herói das estrelas, sob os auspícios da Mythos Editora. É o melhor presente que os loucos por gibi poderiam receber do bom Papai Noel.
Criação iluminada
Para quem não sabe, o Surfista Prateado surgiu em 1966, numa história desenhada pelo veterano Jack Kirby, e logo encantou Stan Lee, o grande inovador dos quadrinhos, então o maioral da Marvel Comics americana. Lee assumiu-o integralmente e a ele dedicou um carinho especial, diferenciando-o de todos os super-heróis então existentes. Fez mais: entregou a ilustração ao magnifico John Buscema e foi soltando o personagem devagarinho, com extrema parcimônia, para não vulgarizá-lo. A ação tinha muito de místico e os diálogos eram quase bíblicos. O ponto alto das histórias, porém, era a angústia do personagem, confinado num mundo tão belo quanto incompreensível.
“Em algum lugar, na profunda vastidão do espaço, uma incrível figura rasga o cosmo na velocidade da luz, viajando pelas estrelas como um cometa vivo, com a liberdade e abandono do próprio vento. Sem descanso, ele desliza no vácuo, esquivando-se de meteoros, circulando asteróides, vagando de planeta em planeta, tendo galáxias inteiras como portas de escala, e usando o próprio Universo infinito como sua via de peregrinações. Um ser que, por falta de um nome melhor, chamaremos de Surfista Prateado”.
Foi assim que Stan Lee apresentou o novo personagem aos leitores.
Originalmente, Silver Surfer era Norrin Radd, um jovem e irrequieto habitante do longínquo planeta Zenn-La, onde a raça humana atingiu a perfeição sonhada. Guerra, crimes, doenças e desigualdades sociais há muito deixaram de existir ali. Mas era exatamente isso que atormentava Norrin, pois o povo perdera o espírito da aventura, o entusiasmo pela exploração do novo, pelo conhecimento.
Doloroso exílio
Quando uma nave alienígena chegou à galáxia de Zenn-La, os temores de Norrin se materializaram: a mesma raça que banira as armas e esquecera o medo redescobre o pânico. E tem carradas de razão para isso: a desconhecida nave conduz a bordo Galactus, o impiedoso devorador de mundos. Em troca da salvação de sua gente, Norrin se oferece para ser o batedor estelar de Galactus, com poderes especiais e a missão de percorrer o universo, por toda a eternidade, à procura de mundos desprovidos de vida inteligente para saciar a fome do vilão cósmico. Seu corpo foi, então, revestido por uma camada prateada indestrutível e ele recebeu, como meio de transporte espacial, algo semelhante a uma prancha de surfe.
Tudo caminha bem, até o dia em que criador e criatura chegam ao planeta Terra. Galactus considera os seres aqui existentes insignificantes demais para serem poupados, mas é contestado por seu arauto. Resultado: o Surfista é confinado, como castigo, ao redor do planeta Terra, um mundo cheio de hostilidade, e perde os seus poderes espaço-temporais.
Este é o começo de tudo. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, o Peregrino das Estrelas pode exercitar o seu tormento. A bordo de sua prancha voadora, ele se perde em reflexões:
– Em todas as galáxias, em todos os infinitos recônditos do espaço, jamais encontrei um mundo mais abençoado que este. Nenhum planeta é tão abundantemente dotado de beleza natural, clima ameno… Todos os ingredientes para criar um verdadeiro paraíso. Agraciado com chuvas em abundância, solo fértil o suficiente para alimentar uma galáxia… E um sol sempre quente e constante… simbolizando novas vidas, novas esperanças. Mais do que qualquer outra forma de vida, a raça humana foi divinamente favorecida! Mesmo assim, em sua incontrolável insanidade, em sua imperdoável cegueira, tenta destruir esta jóia brilhante… E hoje, preso a este mundo de loucuras, estou eu!
A primeira série de aventuras do Surfista Prateado durou exatos 17 números, todos pelas mãos de Lee e Buscema.
Perda do paraíso
Muito provavelmente, o Surfista Prateado representa a primeira grande tentativa da Marvel Comics para elevar o nível dos gibis de super-heróis – como diagnostica Marcelo Naranjo, do site UniversoHQ. “Uma entidade fictícia, criada para cativar não apenas crianças e adolescentes, mas também leitores adultos e de gosto refinado. Uma espécie de Adão, que, ao exercer o seu livre-arbítrio, perdeu o paraíso”.
No Brasil, as aventuras do ex-arauto de Galactus foram lançadas, no ano de 1969, pela GEP, de Miguel Penteado; depois, ele esteve na EBAL, de Adolfo Aizen, como coadjuvante em histórias de outros personagens, até chegar à Editora Abril, que republicou a saga, em cores, a partir de Grandes Heróis Marvel n.º 33 e em Superaventuras Marvel. Aqui, afora as edições de lançamento, números especiais e minisséries, ele nunca teve título próprio. Talvez seja bom demais para isso.
Surfista Prateado – Edição Histórica, em formato americano, 240 páginas de miolo, em preto-e-branco, produto nacional da Mythos Editora, com preço de R$ 19,90, destina-se especialmente ao leitor de bom gosto, capaz de extrair das páginas do gibi, além de diversão, passatempo e bela arte quadrinizada, alguns momentos de reflexão. Tal qual o herói platinado, nesse memorável e imperdível trabalho de Stan Lee e John Buscema.
