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Um ‘Les Misérables’ de altíssimo nível

A montagem de Les Misérables em cartaz no Teatro Renault é um marco na produção brasileira de musicais. Em um único espetáculo, é possível constatar que, de tão elevado, o nível do trabalho nacional já é capaz de receber um ator profissional estrangeiro cujo gabarito não faz sombra aos demais. A interpretação do espanhol Daniel Diges como um dos protagonistas, Jean Valjean, repleta de nuances e é marcada por uma voz estrondosa, está no mesmo nível do brasileiro Nando Pradho que, na pele do também protagonista Javert, oferece uma atuação carregada de sentimento e técnica dosados na medida exata. Para completar, Les Misérables traz ainda um elenco de apoio coeso, que desperta surpresas na sucessão das cenas.

Com letra sofisticada e melodia marcante, Les Misérables é um dos mais completos musicais dos últimos tempos, oferecendo um desafio aos produtores. Assim, se bem executada, a produção exibe o capricho necessário para narrar a atormentada trajetória de dois homens, o policial Javert e o ex-prisioneiro Valjean, unidos por uma perseguição que atravessa os anos e que expõe todos os elementos da condição humana, como lealdade, traição, humildade, egoísmo, solidariedade. Não se pode esquecer que o espetáculo é inspirado no livro de Victor Hugo, escritor notadamente humanista.

Tal confronto de desejos é o que delineia a trajetória de Valjean e Javert. O primeiro começa a história como um homem diante da adversidade do mundo, necessitando usar a força para sobreviver. Aos poucos, à medida em que envelhece, torna-se mais sensato e caridoso. O arco dessa mudança é maravilhosamente bem mostrado por Daniel Diges. De uma atuação notadamente física no início, com gesticulação acentuada, ele passa para os detalhes mais delicados na fase final, demonstrando pelo gestual mais contido a passagem do tempo. Também o uso da voz modifica: de vigorosa e raivosa para lamentosa e conciliadora. Uma atuação soberba.

Ele certamente atinge tal estágio por ter um antagonista à altura. Depois de um espetacular início de carreira, em que figurou nos principais musicais da época, como A Bela e a Fera (2003), O Fantasma da Ópera (2005/2006) e Miss Saigon (2007/2008), Nando Pradho decidiu investir na trajetória solo. A ausência certamente o preparou para uma volta triunfante. Com Javert, ele revela o militar de caráter implacável, movido por uma obsessão. Mas, aos poucos, a atuação de Pradho permite descobrir o homem atormentado por seus demônios, o que o torna um ser incrivelmente frágil e só. Basta acompanhar sua interpretação da canção Estrelas, digna de figurar em qualquer antologia.

A montagem brasileira conseguiu ainda a proeza de reunir profissionais perfeitos para os demais papéis. Kacau Gomes reproduz com rara beleza a angústia de Fantine enquanto Clara Verdier oferece a delicadeza e a voz afinadíssima ao viver Cosette.

Impressionantes ainda são as interpretações de Laura Lobo (Éponine) e Filipe Bragança (Marius). Ela emociona como a menina obrigada a sufocar um amor não correspondido, oferecendo uma interpretação singular de Só Pra Mim (On My Own), capaz de provocar lágrimas. Em igual medida, ele traça com nitidez a angústia do rapaz que foi o único sobrevivente na revolta estudantil, oferecendo uma doída porém delicada interpretação a Tantas Mesas e Cadeiras (Empty Chairs at Empty Tables), uma das mais belas canções do musical.

A se destacar ainda a entusiasmante interpretação de Pedro Caetano como o jovem líder Enjolras, cuja crença na liberdade, na voz do intérprete, jamais se parece ingênua. Finalmente, Ivan Parente e Andrezza Massei, perfeitos como o casal de ladrões Monsieur e Madame Thénadier.

Responsáveis pelos momentos cômicos do espetáculo, eles usam sem piedade seus inúmeros talentos, focando com perfeição no cerne de seus personagens: são engraçados, sim, mas são miseráveis que roubam para sobreviver. Detalhes que tornam a atual montagem brasileira em um espetáculo imperdível.

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