?A arte para as crianças.
Ela estava sentada em uma cadeira alta, diante de um prato de sopa que lhe chegava à altura dos olhos. Tinha o nariz franzido e os dentes apertados e os braços cruzados. A mãe pediu ajuda.
Conte um conto pra ela, Onelio pediu. Conte, você que é escritor.
Y Onelio Jorge Cardoso, esgrimindo uma colherada de sopa, começou seu relato:
Era uma vez um passarinho que não queria comer a comidinha. O passarinho tinha o biquinho fechadinho, fechadinho, e a mãezinha lhe dizia: ?Você vai ficar anãozinho, passarinho, se não comer a comidinha?. Mas o passarinho não obedecia a mãezinha e não abria seu biquinho…
E então a menina o interrompeu:
Que passarinho de merdinha, opinou.?
Comecemos pelas personagens. Talvez algum leitor interessado pela obra do cartunista Quino associe espontaneamente o comportamento da menina à imagem da Mafalda, que também tinha aversão às sopas. Porém, em nenhum momento sabemos o seu nome nem o de sua mãe: são personagens anônimas. Diferentemente de Borges, que foi um escritor propenso a confundir seus leitores com falsas referências e nomes apócrifos, Galeano se notabilizou pela mania de mencionar em seus textos personalidades históricas, emprestadas do mundo real, com nome, sobrenome, profissão e endereço. Neste caso, o pai não é uma personagem inventada, foi um contista verdadeiro, morto em 1986, que deixou uma prosa didática e gostosa para adultos e crianças e que até hoje é considerado o escritor nacional de Cuba.
Observe o leitor como Galeano, já nas primeiras linhas, cria uma tensão entre o comer e o não-comer, entre a vontade da menina e a vontade da mãe. Note a resistência gerada pela liberdade de escolha da criança frente às imposições do mundo. O pai, que sendo escritor representa a arte, poderia ter assumido a função de mediador dessa tensão. Entretanto, pressionado pela força contrária (a mãe), ele ?esgrime? contra a filha, usando como arma a linguagem estereotipada da literatura pedagógica. Sua historinha ridiculamente piegas nada mais é do que uma mimese da realidade (uma simples transposição dos fatos), infantilizada pela abundância dos diminutivos e das repetições.
A frase final do texto pode representar muitas coisas ao mesmo tempo. Em primeiro lugar funciona como um ardil para provocar no leitor o riso e aliviar a tensão inicial, estimulando a reflexão, pois através do riso vislumbramos preconceitos arraigados e antigos vícios humanos. Também pode ser um questionamento do modo politicamente correto de se comportar e de ver o mundo, em que a reação da menina simboliza uma bandeira pelo direito a ser diferente. E não menos importante é entendermos essa frase como uma crítica à arte de má qualidade ou à arte usada como intimidação, que pretende conformar o indivíduo à sociedade.
Tomemos agora o título. Ele não é apenas decorativo, tem uma ligação orgânica com o texto. Mas isso não se nota na primeira leitura, quando se apresenta apenas como o prenúncio de alguma brincadeira pueril. Contudo, na releitura, o leitor acaba percebendo que, contrariamente ao que esperava, o título é irônico e sarcástico: ele se refere a esse tipo deturpado de estratégia discursiva usada para convencer, amoldar ou amedrontar as crianças. Desta forma, o título também pode conter uma espécie de conclusão ou de lição moral, como aquela que cerra uma fábula ou um conto de fadas.
Ernesto Sábato disse certa vez que o bom escritor ?expressa grandes coisas com pequenas palavras?, Galeano é um belo exemplo disso.