Eduardo Galeano é um mestre do relato curto, dos contos mínimos, das crônicas instantâneas e das histórias-relâmpago, de uma narrativa extremamente concisa e ao mesmo tempo provocante. Esse escritor uruguaio, mais conhecido no Brasil pelo livro Las venas abiertas de América Latina (1971), se aperfeiçoou na arte do escrever breve. Como um fotógrafo de instantes, ele se apropria de diversos tipos de discursos, torna suas as palavras alheias e, com isso, rompe algumas barreiras entre os gêneros literários. Vejamos um de seus textos, extraído de El libro de los abrazos (1989), que eu traduzo abaixo:
?A arte para as crianças.
Ela estava sentada em uma cadeira alta, diante de um prato de sopa que lhe chegava à altura dos olhos. Tinha o nariz franzido e os dentes apertados e os braços cruzados. A mãe pediu ajuda.
Conte um conto pra ela, Onelio pediu. Conte, você que é escritor.
Y Onelio Jorge Cardoso, esgrimindo uma colherada de sopa, começou seu relato:
Era uma vez um passarinho que não queria comer a comidinha. O passarinho tinha o biquinho fechadinho, fechadinho, e a mãezinha lhe dizia: ?Você vai ficar anãozinho, passarinho, se não comer a comidinha?. Mas o passarinho não obedecia a mãezinha e não abria seu biquinho…
E então a menina o interrompeu:
Que passarinho de merdinha, opinou.?
Comecemos pelas personagens. Talvez algum leitor interessado pela obra do cartunista Quino associe espontaneamente o comportamento da menina à imagem da Mafalda, que também tinha aversão às sopas. Porém, em nenhum momento sabemos o seu nome nem o de sua mãe: são personagens anônimas. Diferentemente de Borges, que foi um escritor propenso a confundir seus leitores com falsas referências e nomes apócrifos, Galeano se notabilizou pela mania de mencionar em seus textos personalidades históricas, emprestadas do mundo real, com nome, sobrenome, profissão e endereço. Neste caso, o pai não é uma personagem inventada, foi um contista verdadeiro, morto em 1986, que deixou uma prosa didática e gostosa para adultos e crianças e que até hoje é considerado o escritor nacional de Cuba.
Observe o leitor como Galeano, já nas primeiras linhas, cria uma tensão entre o comer e o não-comer, entre a vontade da menina e a vontade da mãe. Note a resistência gerada pela liberdade de escolha da criança frente às imposições do mundo. O pai, que sendo escritor representa a arte, poderia ter assumido a função de mediador dessa tensão. Entretanto, pressionado pela força contrária (a mãe), ele ?esgrime? contra a filha, usando como arma a linguagem estereotipada da literatura pedagógica. Sua historinha ridiculamente piegas nada mais é do que uma mimese da realidade (uma simples transposição dos fatos), infantilizada pela abundância dos diminutivos e das repetições.
A frase final do texto pode representar muitas coisas ao mesmo tempo. Em primeiro lugar funciona como um ardil para provocar no leitor o riso e aliviar a tensão inicial, estimulando a reflexão, pois através do riso vislumbramos preconceitos arraigados e antigos vícios humanos. Também pode ser um questionamento do modo politicamente correto de se comportar e de ver o mundo, em que a reação da menina simboliza uma bandeira pelo direito a ser diferente. E não menos importante é entendermos essa frase como uma crítica à arte de má qualidade ou à arte usada como intimidação, que pretende conformar o indivíduo à sociedade.
Tomemos agora o título. Ele não é apenas decorativo, tem uma ligação orgânica com o texto. Mas isso não se nota na primeira leitura, quando se apresenta apenas como o prenúncio de alguma brincadeira pueril. Contudo, na releitura, o leitor acaba percebendo que, contrariamente ao que esperava, o título é irônico e sarcástico: ele se refere a esse tipo deturpado de estratégia discursiva usada para convencer, amoldar ou amedrontar as crianças. Desta forma, o título também pode conter uma espécie de conclusão ou de lição moral, como aquela que cerra uma fábula ou um conto de fadas.
Ernesto Sábato disse certa vez que o bom escritor ?expressa grandes coisas com pequenas palavras?, Galeano é um belo exemplo disso.