A cantora lírica russa Anna Netrebko, mais célebre soprano da atualidade, faz nesta segunda-feira sua estreia no Brasil. Na Sala São Paulo, vai apresentar trechos de óperas italianas e francesas ao lado do marido, o tenor do Azerbaijão Yusif Eyvazov, do maestro Jader Bigniamini e da Orquestra Acadêmica do Mozarteum Brasileiro, formada por jovens que integram os projetos de formação da entidade. Um concerto, ela diz ao Estado, sobre o “espírito do amor”.

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Netrebko é um fenômeno duradouro em mundo musical marcado pela rapidez com que descarta seus fenômenos. Estourou em uma produção da Traviata de Verdi no Festival de Salzburgo no início dos anos 2000. A bela voz e a presença cênica marcante logo a fizeram rodar o mundo. Com o tempo, veio a maturidade. Ficaram para trás as jovens heroínas apaixonadas, aos poucos substituídas pela gravidade de personagens como Lady Macbeth, na adaptação de Verdi para o Macbeth de Shakespeare ou a Tosca, soprano que na ópera de Puccini é mata o rival político de seu amado para livrá-lo da prisão.

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É essa nova fase da carreira o destaque do concerto desta segunda-feira, ainda que alguns papéis antigos também marquem presença. “Minha voz definitivamente mudou, mas eu ainda posso cantar o meu repertório anterior se eu quiser. No entanto, ele já não é mais tão interessante para mim. Eu queria tentar algo novo. À medida em que fui ficando mais velha, me tornei mais sábia e mais forte também. Guiada pelos meus professores e pelos maestros, eu entendi que era hora de começar a experimentar o papéis mais dramáticos. E deu certo.”

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A mudança, ela explica, não é apenas vocal. “Eu vivi muito entre Adina (na ópera cômica O Elixir do Amor, de Donizetti) e Tosca. Minha voz é diferente hoje, mas não só, tudo na verdade mudou. Eu sempre tentei criar papéis a partir das minhas experiências. A diferença hoje é que cantei mais e vivi mais.”

A trajetória de sucesso de Netrebko começou com uma história digna de Cinderela. A jovem de 17 anos deixou o interior da Rússia em direção a São Petersburgo. Encontrou um emprego como faxineira no Teatro Mariinsky. Foi descoberta ao ser ouvida pelo maestro da casa. “Já na infância, eu sabia que amava estar no palco, atuando, dançando ou cantando. Eu sabia que queria atuar. A ópera surgiu um pouco mais tarde. E não olhei para trás desde então.”

Em um de seus primeiros trabalhos, Netrebko gravou clipes para algumas das principais árias do repertório, lançados em DVD. Tudo o que faz, diz, tem como objetivo mostrar como a ópera é “emocionante”. “As histórias são incríveis e são pontuadas por temas tão complexos: amor, guerra, poder, magia, morte, força. Na ópera, há sempre alguma coisa que pode interessar alguém.”

O sucesso da soprano também tem a ver com uma mudança geopolítica no cenário musical europeu. Desde o fim dos anos 1990, ao assumir o Teatro Mariinsky o maestro Valery Gergiev colocou o repertório russo de volta no mapa e tornou-se ele próprio uma das estrelas da regência internacional, levando consigo uma nova geração de artistas do país. Não por acaso, Gergiev é o primeiro nome que Netrebko lembra, seguido da soprano italiana Renata Scotto, ao falar das influências mais marcantes em sua trajetória. “Eles moldaram minha compreensão da música e do canto.”

Gergiev é uma figura controversa, dentro e fora do palco – em especial pela sua amizade com o presidente russo Vladimir Putin. A própria Netrebko já provou de certo gosto amargo por causa disso. Em 2013, um grupo de manifestantes foi para a porta do Metropolitan Opera House de Nova York na noite de abertura da temporada exigir dos artistas – Netrebko e Gergiev entre eles – um posicionamento direto sobre a perseguição a homossexuais na Rússia.

Saíram de mão abanando. A soprano reafirmou apenas que, como artista, colabora com “grandes colegas, independentemente de sua raça, etnia, religião, gênero ou orientação sexual”. Música e política, em sua cartilha, são temas que não se misturam – e do qual ela não fala. Prefere celebrar os próximos lances da carreira. “Estou realmente feliz em adicionar Adriana Lecouvreur, Aida e Maddalena, de Andre Chenier, assim como Leonora, em A Força do Destino a meu repertório”, conclui.