São Paulo – Jorge Dória não esconde sua idade – 83 anos, 52 deles vividos sobre palcos ou em estúdios de cinema ou televisão. Mas prefere não fazer alarde: “Não escondo, mas não gosto de falar. Gosto de conviver com gente nova. Sou um pouco vampiro. Minha primeira mulher era 7 anos mais nova do que eu. A segunda, 17. A terceira, e atual, 42. A quarta está nascendo hoje”, diz com o humor que lhe é peculiar e fez sua fama sobre os palcos.
Quem não conhece o estilo desse ator de indubitável humor poderá fazê-lo no espetáculo Juntando os Cacos, que estréia hoje em São Paulo. Nessa comédia, ele conta histórias de sua vida, dos bastidores do teatro e ainda recria pequenas cenas de três de seus retumbantes sucessos no teatro: Gaiola das Loucas, O Avarento e Escola de Mulheres.
O título faz alusão à marca registrada da carreira do ator, seus “cacos”, como são conhecidos, no teatro, os improvisos criados por atores ou atrizes sobre o texto original. Com raro domínio do chamado “tempo de humor”, o talentoso Dória acabou fixando sua imagem como ator capaz de provocar gargalhadas mesmo que à custa da desfiguração do texto original.
Talvez por isso, os mais importantes prêmios de sua carreira tenham vindo mesmo do cinema, como o Saci por sua atuação no filme O Assalto ao Trem Pagador. Na televisão, brilhou em novelas como O Pulo do Gato, Meu Bem, Meu Mal e Que Rei Sou Eu?, sem contar o seu impagável Lineu, na primeira versão de A Grande Família, personagem hoje vivido por Marco Nanini.
Afinidade
Há algo mais em comum entre esses dois atores, ambos de grande talento cômico. Durante muitos anos, Dória acalentou o desejo de viver o personagem Willy Loman, protagonista da peça A Morte de um Caixeiro-Viajante, de Arthur Miller. “Todos nós temos tesão em alguma coisa. O grande tesão do comediante é fazer drama, porque ele acha sempre que é mais fácil do que a comédia. E, de certa forma, é. A comédia depende de ritmo. É uma caçada (faz gesto de quem mira com uma espingarda). Um barulhinho, um ?tlec? no momento de armar gatilho, e a pombinha voa.”
Por ironia do destino, ele credita a uma espécie de “caco” do tradutor e diretor Domingos de Oliveira a má recepção do espetáculo. “Ele criou um outro final, lindíssimo. Mas a crítica não perdoou a interferência num clássico. Além disso, estreou em São Paulo num período de eleições para governador, a cidade coberta de outdoors. Tudo isso prejudicou o espetáculo. Mas eu adorei fazer.”
“Pouca gente chega aos 83 anos feliz”
São Paulo – A seguir, Jorge Dória fala sobre as escolhas que fez em sua carreira.
Pergunta – Na peça Os Sete Gatinhos, de Nélson Rodrigues, você não conseguiu botar caco. É verdade?
Jorge Dória – Quando interpreto a peça de um autor argentino traduzida pelo seu amante espanhol, eu crio cacos. Quando interpreto a peça de um bom autor que não está indo bem, também. Mas com Nélson Rodrigues é impossível, porque ele escreve do jeito que funciona, é um grande autor.
P – Mas Molière também é um grande autor e no entanto você coloca caco.
JD – É diferente. Molière aprendeu a fazer comédia com as trupes da Commedia del?Arte. Ele representava na rua, onde até bêbado entra em cena. Quando ele dizia “naquela casa de telhas vermelhas, podem olhar”, dizia isso porque tinha uma casa assim próxima ao palco, o público olhava e ela estava lá. Agora, dentro de um teatro, você vai repetir isso?
P – Você apontava a suposta casa, o público olhava e interrompia a cena.
JD – Eu digo: “Pera aí, se eu botar uma casa vermelha dentro do teatro me tiram daqui a porrada”. Claro, não se pode modernizar Molière, falar de eletricidade, automóvel, isso não pode. Não havia luz elétrica. Em Escola de Mulheres, eu conto que um cenógrafo iluminou a ribalta com velas, como na época de Molière, mas a cada vez que eu falava Arnolfo (sopra o “fffffooo” final), eu apagava uma vela. Era obrigado a virar o rosto para falar o nome do personagem (imita). (Risos)
P – Em algum momento, ao longo de sua carreira, você se sentiu prisioneiro de seu talento cômico?
JD – Essa é uma pergunta malvada, dizer que fui vítima de mim mesmo.
P – Não quis ofendê-lo, mas já vi você em cena. Você possui, sem dúvida, um grande talento. Mas penso que sua capacidade de improvisar acabou por limitar sua carreira.
JD – Aí é questão de eleição de vida. O Paulo Autran é um excelente comediante, não sei se você sabe disso, e um excelente ator dramático também. Ele se aproveitou com muita inteligência. Faz comédia e drama; comédia leve e clássicos. Ele é respeitado, está rico, é dono de hotel (pousada em Paraty). Eu, realmente, com este meu temperamento esculhambado, e vou até aceitar o talentoso que você me atribui, meto os pés pelas mãos. E ainda tem a necessidade de ganhar dinheiro num País de inflação galopante. Por isso talvez eu tenha brincado um pouco a mais, usando o meu talento. Se tivesse feito de outra maneira, quem sabe seria melhor? Mas não estou arrependido, porque estou feliz. Para responder objetivamente a sua pergunta, a vida é uma grande brincadeira e a gente não tem domínio sobre ela. Quando as pessoas se policiam demais, podem até conseguir seus objetivos, mas não são felizes. Pouca gente chega aos 83 anos feliz. (BN)