Por pouco, Silio Boccanera não seguiu a carreira de economista. Estudante da Universidade Federal do Rio de Janeiro, chegou à conclusão de que não tinha muita vocação para Ciências Econômicas lá pelo 2º ano. Como sempre teve aptidão para assuntos internacionais, resolveu mudar para Jornalismo. Em 1970, entrou para o Jornal do Brasil, onde ficou até 82. A primeira matéria como jornalista, ainda estagiário, foi para o suplemento cultural do ?JB. O assunto era a deterioração e queda dos azulejos pintados por Cândido Portinari para o prédio do Ministério da Educação, no Centro do Rio. ?O que a primeira matéria me trouxe foi a certeza de que sempre há jeito de melhorar, brinca.
Formado em Jornalismo pela UFRJ, Silio Boccanera decidiu fazer pós-graduação no exterior, mais precisamente na Universidade da Califórnia do Sul, nos Estados Unidos. E passou a trabalhar como correspondente do ?JB na Costa Oeste americana. ?Sempre tive vontade de ser correspondente internacional porque sempre me interessei por acontecimentos além das fronteiras brasileiras. Só não imaginei que fosse durar tanto tempo, espanta-se. Em pouco tempo, Silio Boccanera transferiu-se para Los Angeles, onde cobriu algumas cerimônias de entrega do Oscar, e, mais adiante, para Washington, onde cobriu os bastidores da Casa Branca na gestão do então presidente Jimmy Carter.
O jornalista estava na Nicarágua no momento em que acontecia a revolução sandinista. |
Na década seguinte, Silio Boccanera transferiu-se para a Globo. O dia de sua chegada a Londres, onde passaria a morar desde então, não poderia ser mais inesquecível: 2 de abril de 1982, o dia em que as tropas argentinas invadiram as Malvinas. Durante 14 anos, cobriu Europa, África e Oriente Médio. Ainda radicado em Londres, chegou a trabalhar por dois anos para o SBT. Hoje, além dos programas Sem Fronteiras e Milênio, ainda escreve para diversos jornais, revistas e sites. ?Na medida em que posso manter esse esquema de trabalho, isso me satisfaz plenamente. Mas também nunca sei o que vai passar pela minha cabeça daqui a alguns dias, meses ou anos?, admite, brincalhão.
Incursões à trincheira literária
Não é por falta de convite que Silio Boccanera não volta a escrever um novo livro. Em 35 anos de carreira, já escreveu dois: um factual, A Revolução na Nicarágua, de 1979, e outro de ficção, Jogo Duplo, de 97. Recentemente, durante a 12ª edição da Bienal Internacional do Livro, voltou a ser assediado por editores ávidos por uma nova publicação. Por enquanto, é taxativo em sua resposta. ?Num país de Rubem Fonseca e Ana Maria Machado só para citar dois contemporâneos de qualidade , não me considero um ?escritor?. Sou apenas um jornalista que escreveu dois livros. Não tenho qualquer pretensão literária?, explica ele.
Da última vez, já não foi nada fácil convencê-lo a escrever um livro. Silio Boccanera só cedeu porque a Editora Moderna sugeriu que ele misturasse ficção e realidade. Assim, surgiu Jogo Duplo, um thriller político que retrata os bastidores das coberturas internacionais a partir do seqüestro do embaixador brasileiro no Líbano. O conflito ético entre os jornalistas é a tônica do debate entre os que defendem o jornalismo objetivo de informação e os que preferem a notícia como espetáculo. ?Pela primeira vez, após trinta anos na narrativa dos fatos, pude inventar uma história. Curiosamente, foi possível discutir muitas verdades?, acredita ele.
A primeira incursão de Silio Boccanera pela literatura, porém, aconteceu em 1979, quando publicou A Revolução Sandinista, já esgotado. O então correspondente internacional do ?Jornal do Brasil recorda que começou a visitar e a cobrir a Nicarágua um ano antes da revolução. Por sorte, estava lá quando começou a ofensiva final e ficou até a vitória sandinista. Depois disso, ainda voltou ao país três meses, seis meses e um ano depois. ?Vejo que esse privilégio permitido pelo ?JB? em sua época áurea tornou-se quase impossível sob as condições financeiras e editoriais em que a mídia brasileira opera hoje em dia, lamenta.
Indo aonde a notícia está
André Bernardo
O primeiro passaporte que Silio Boccanera tirou foi em 1965. Na época tinha apenas 17 anos e estava prestes a sair em viagem de intercâmbio. Mal sabia o futuro correspondente da Globo que aquele seria o primeiro de muitos passaportes que tiraria pela vida afora. Dez anos mais tarde, se transferiu para o exterior. Primeiro, morou nos Estados Unidos e, depois, na Inglaterra, onde reside até hoje. De lá, apresenta dois programas para a Globo News: o Sem Fronteiras, de debates, e o Milênio, de entrevistas. Também envia uma coluna semanal que é publicada aos domingos na seção Mundo de O Estado do Paraná.
?Hoje, o meu trabalho é menos o relato do factual e mais a interpretação. Já não tenho mais idade para ficar correndo atrás de encrenca?, brinca ele, aos 57 anos.
Ao longo de 30 anos como correspondente, Silio Boccanera se orgulha de ter sido, por diversas vezes, o homem certo no lugar certo e na hora certa. Entre as suas principais coberturas internacionais, cita a revolução sandinista na Nicarágua, a guerra civil na Iugoslávia e, principalmente, a queda do Muro de Berlim. Então chefe do escritório da Globo em Londres, Silio estava na Alemanha em substituição ao repórter Pedro Bial, na época no Brasil ajudando na cobertura das eleições presidenciais. ?Poucas vezes é possível testemunhar um acontecimento e ter certeza de que a História, com ?H? maiúsculo, está sendo escrita na sua frente. Aquele, certamente, era um deles?, recorda, emocionado.
Com 35 anos de jornalismo, Silio confessa, volta e meia, sentir saudades do Brasil. Por isso mesmo, duas ou três vezes ao ano, desembarca por aqui para rever familiares e manter-se atualizado do que acontece em seu país de origem. Apesar de ter amplo acesso à informação no exterior, através da internet e da tevê a cabo, garante que nada substitui um bom bate-papo com amigos para se ter um ?feeling? da real situação brasileira. Ele só não sabe responder é quando pretende voltar de vez… ?Sabe aquela música ?Bota água no feijão que eu tô voltando?? Pois é. Agora, quando vai ser, eu não sei. Pode ser no mês que vem, como pode ser daqui a dez anos?, tergiversa.
P – Este ano, você completa três décadas como correspondente internacional. Que balanço faz de sua trajetória profissional?
R – Para mim, foi uma experiência extraordinária, tanto do ponto de vista pessoal quanto do profissional. Tive a sorte de testemunhar momentos históricos muito interessantes, que vão desde explosões revolucionárias na América Central, como guerrilhas em El Salvador e na Nicarágua, até crises econômicas e convulsões sociais na Europa, que culminaram, por exemplo, na implosão do mundo comunista e na queda do Muro de Berlim. Para um jornalista, não há nada melhor do que estar no centro dos acontecimentos mundiais como testemunha ocular da História. Profissionalmente falando, não tenho do que reclamar.
P – Durante a cobertura de guerras e conflitos, você nunca temeu pela própria vida?
R – Sem dúvida. O tempo todo. Mas o medo é um referencial muito importante. Afinal, serve para orientá-lo. Os repórteres supostamente mais destemidos e corajosos são sempre os primeiros a morrer. Cansei de ver isso acontecer. Em situações de perigo, o medo funciona como um parâmetro: ?E aí? Devo ir? Não devo? Além disso, com o tempo, você desenvolve algo que eu chamaria de ?instinto educado. Instinto porque vem de dentro e você não sabe muito bem como explicar, mas educado porque é baseado na sua vivência do negócio. Às vezes, numa área de guerra, o silêncio é até mais assustador que um tiroteio. No meio de um tiroteio, pelo menos, você sabe de onde vêm os tiros. Mas, e no silêncio?
P – Alguns correspondentes internacionais e, principalmente, os de guerra costumam dizer que o perigo vicia. Você concorda?
R – Plenamente. Vicia e muito. E é um perigo quando isso acontece. Inclusive, se você pega uma série de conflitos sucessivos, repara que são sempre as mesmas pessoas que vão. São os chamados profissionais de cobertura de guerra. Porque é uma cachaça mesmo. Se não me engano foi o Winston Churchill que disse que não há nada mais estimulante do que você ser alvo de um ataque e escapar. Ser atingido, não… (risos). Mas quando escapa, sente uma adrenalina incrível. E, então, passa a sair em busca dela constantemente. Se não se disciplinar, fica correndo atrás de encrenca o tempo todo.
P – Mas o fato de ser um jornalista brasileiro serviu para abrir portas no exterior?
R – Funciona nos dois níveis. Não abre na medida em que o Brasil não tem muito peso internacional em termos de mídia. Se você é correspondente de um grande jornal americano ou europeu, o acesso é maior porque interessa para aquele sujeito atingir aquele determinado público. Sendo brasileiro, ele pensa: ?O que me interessa falar para o Brasil? Nesse aspecto, funciona contra. Mas, por outro lado, o Brasil tem uma imagem muito simpática no exterior. Sobretudo quando o assunto é futebol. Se chega um guerrilheiro mal-encarado na sua frente e você puxa assunto de futebol com ele, o sujeito logo se amansa. Já recorri a essa estratégia várias vezes. Certa vez, uma equipe nossa foi a Angola durante a guerra civil. Chegando lá, caiu nas mãos da guerrilha. No caminho, o cinegrafista Paulo Pimentel se aproximou do líder do grupo e falou: ?Pelé!?. Mas o sujeito perguntou: ?Quem é??. Aí, o Paulo voltou e disse: ?Estamos fritos! Se ele nunca ouviu falar do Pelé, dessa a gente não escapa…?. (risos).
P – Qual é a lembrança mais forte que você guarda do dia da queda do Muro de Berlim?
R – Raras vezes, a gente tem a chance de ver a História, com ?H maiúsculo, se desenrolar na sua frente. E ali eu tinha certeza de que estava vivendo um desses raros momentos. O clima era de festa. As pessoas estavam comemorando, batendo com picaretas no muro e fazendo até batucada. Foi o Paulo Pimentel, inclusive, que insistiu comigo: ?Sobe lá! O muro era alto, as pessoas tiveram de me ajudar. Eu subi e o Paulo ficou à distância, gravando as pessoas ali, derrubando o muro. Derrubando em termos porque era muito duro, as pessoas martelavam, mas não acontecia nada. Mas o clima ali era de euforia, não pelo muro em si, mas por tudo que ele representava. Naquele momento, eu e Paulo sentimos que uma mudança histórica estava acontecendo na nossa frente. Há uma certa tendência, um certo lugar-comum, que é dizer: ?Esse é um momento histórico! Mas aquele certamente era.
P – Há 30 anos no exterior, você ainda pensa em morar no Brasil?
R – Penso sim. No fundo, me admiro que ainda não tenha voltado. Quando saí, já pensava em voltar. E esperava que não durasse tanto. Mas aí passaram dois, quatro, dez anos, quando passaram 20, deixei de contar. Na minha cabeça, ainda estou voltando. Agora, quando vou voltar exatamente, não sei direito. Pode ser no mês que vem, pode ser daqui a 10 anos.