‘Um Bonde Chamado Desejo’ ganha nova versão no Brasil

O grito gutural ainda causa arrepios: “Stella!”, chama o abrutalhado Stanley Kowalski, em raro momento de fragilidade, arrependido por ter agredido a mulher. O motivo da discórdia novamente foi a irmã dela, Blanche Dubois, que se estabeleceu no pequeno apartamento do casal e rompeu com a rotina do lar. Homem pobre e rude, Stanley age por instinto na proteção de seus poucos bens, ameaçados pela presença de Blanche e sua ambígua neurose, provocada pela fome de amor e desejo de compreensão. O trio, um dos mais famosos da dramaturgia universal, forma o triângulo de Um Bonde Chamado Desejo, uma das mais perfeitas e complexas peças do americano Tennessee Williams (1911-1983) e que ganha nova versão brasileira, com estreia prevista para quinta-feira, 4, para convidados (sexta, 5, é para o público), no Tucarena, como parte da comemoração dos 50 anos do Tuca.

“Faz 13 anos que essa peça não é montada no Brasil, ou seja, praticamente duas gerações não tiveram condições de descobrir esse universo de Tennessee”, explica o jovem diretor Rafael Gomes, de 32 anos, que se aproveitou do formato arena do teatro para criar uma instigante montagem. O palco se assemelha a um set de filmagem, com um carrinho que percorre em círculos um trilho, refletores que são manuseados pelos atores em determinados momentos e uma peça retangular móvel, de madeira, com suas mesas e cadeiras, que simula o apartamento dos Kowalski

Se o cenário, criado por André Cortez, sugere pensar em cinema (e não se pode esquecer que Um Bonde Chamado Desejo ganhou clássica versão na tela grande, em 1951, com Marlon Brando e Vivien Leigh), a montagem de Rafael Gomes é essencialmente teatral ao compartilhar com o público o jogo narrativo e seus truques maravilhosos – assim, não apenas a peça retangular faz a plateia imaginar que está dentro de um apartamento como uma mesa de ponta cabeça, coberta por uma manta branca, é uma banheira de verdade.

“O que me interessa é a exposição do artifício, é mostrar que o realismo não é mais a força do teatro”, observa Gomes, que se incumbiu ainda da tradução da peça. “Isso me permitiu descascar o texto até chegar ao seu esqueleto e constatar que ele é essencialmente humano.” Para disputar bem esse jogo, o diretor fez uma cuidadosa seleção de elenco – afinal, a peça conta uma história simples, mas é na apaixonada e cúmplice descrição dos personagens que reside sua grande força dramática.

Maria Luísa Mendonça foi convidada por Rafael Gomes em 2011 para viver Blanche Dubois, mulher hipersensível, traumatizada por uma decepção amorosa e que finge aparentar sanidade quando obrigada a viver em um ambiente ao qual não está acostumada. “Ela realmente acredita no que diz, nos jogos que simula com os homens e no uso da criatividade para disfarçar sua loucura”, acredita a atriz, um furacão em cena, perfeita ao vivenciar a dualidade sanidade/loucura, como presenciou o Estado no ensaio de sábado passado, 23.

Blanche sente um forte e reprimido desejo sexual (que a incomoda e também a repugna) por Stanley Kowalski, marido de sua irmã Stella (Virgínia Buckowski), que, ao contrário dela, aprendeu a aceitar a pobreza e o meio social em que vive. Brusco em seus gestos, Stanley não se sente confortável com a presença daquela mulher que só ironiza a sua rudeza. Assim, em defesa de seu território, vasculha o passado de Blanche e descobre que ela se prostituiu em um hotel miserável, fato que vai, enfim, desencadear a loucura da mulher. “Mesmo assim, ela nunca deixa de dizer a sua verdade”, observa a atriz.

A explosão de virilidade de Stanley tornou-se clássica na interpretação de Marlon Brando, tanto no teatro como no cinema, mas também criou um desafio para novas montagens. “Revi o filme, mas percebi que não seria esse o meu caminho”, conta Du Moscovis, que agora vive Kowalski. “Aceitei o papel, pois queria experimentar uma nova forma de masculino.” De fato, em sua interpretação, Stanley revela-se um homem mais astuto e que, embora ainda abuse da força bruta para impor seu poder, é hábil no jogo de palavras. “Com isso, o texto tornou-se mais importante, especialmente com a decisão do Rafael em esvaziar o cenário até o mínimo necessário”, conta Moscovis.

Em seu texto, Tennessee Williams assinala o caráter ambíguo da natureza humana, o que se torna visível na nova montagem. E, a fim de não vincular a história a uma determinada época, Rafael Gomes trabalha com referências de diversos tempos – como na trilha sonora, que inclui de Beirut a Amy Winehouse. “As músicas traduzem nosso sentimento”, acredita o encenador, cuja montagem segue o preceito de Williams e sua compreensão para indivíduos atingidos pela marginalidade.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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