Um ator paranaense de bem com o público

Nenhum dos personagens que fez antes na tevê levou Ary Fontoura a tantas reflexões quanto o dissimulado Silveirinha, de A favorita. “Eu nunca lidei tanto com o lado negro do ser humano como nesta novela”, justifica o ator de 75 anos, 43 deles de trabalhos ininterruptos na Globo. Em uma carreira com tantos personagens de destaque, Ary já experimentou as graças e desgraças do sucesso. “O seu Nonô de Amor com amor se paga foi o mais popular. Mas eu tive de pedir para a autora diminuir minha participação porque ganhei uma úlcera de tanto estresse”, recorda o ator, sobre o folhetim que fez em 1984. E ainda veio o Florindo Abelha de Roque Santeiro, de 1985, o Arthur da Tapitanga de Tieta, em 1989…

Agora, com Silveirinha, ele recebe uma reação paradoxal por parte do público. É abordado por pessoas que pedem para ele parar de praticar maldades. Mas por outro lado, vê que nem mesmo as crianças têm medo das vilanias que pratica em A favorita. “Como já fiz muita coisa na tevê, me veem como um ator antigo e querem cuidar de mim”, explica. O que não o livra, no entanto, de enfrentar situações inusitadas em estádios de futebol, por exemplo. “Vou muito a jogos e gosto de ficar na arquibancada. Às vezes me jogam alguma coisa na cabeça. Mas depois que a partida começa, esquecem do Silveirinha”, conta Ary, com ar de satisfação. Ary Fontoura começou a fazer cinema em Curitiba, cidade onde nasceu em 27 de janeiro.

P – Lá no início, o que chamou a sua atenção na sinopse do personagem Silveirinha?

R – O pouco que sabia do personagem – um ex-empresário de uma dupla sertaneja – eu achei interessante, apesar de indefinido. Não sabia que ele seria vilão e aceitei porque disseram que apareceria pouco na história.

P – E como é, do meio da novela para cá, ser tão requisitado e aparecer em quase todas as cenas?

R – Estamos trabalhando de uma maneira bem rígida. Há muita cobrança quando se faz uma novela das oito. Às vezes, não consigo sair do personagem. Na profissão de ator, tudo é saber fingir. Mas a gente lida com sentimentos. E, em algumas cenas, esses sentimentos são tão fortes que marcam profundamente. Você não consegue fazer mais nenhuma cena, mas ainda tem 10 pela frente. O Silveirinha me leva a muitas reflexões.

P – Quais?

R – Paro para pensar em como o ser humano é, em como as pessoas resolvem suas vicissitudes. Ninguém é só mau ou só bom. O Silveirinha é humilhado, ofendido, mas também ofende e humilha. Há rancores que nunca foram resolvidos porque ele premeditou um belíssimo futuro e errou. Isso mostra que na vida não dependemos apenas de nós mesmos. Tudo é diálogo. Quando as pessoas se esquecem disso, e o Silveirinha se esqueceu, o caminho fica aberto para alguns valores desprezíveis, como o rancor e a raiva. Nunca lidei tanto com o lado negro do ser humano como estou lidando nessa novela.

P – O crescimento do personagem no folhetim surpreendeu você?

R – Isso é resultado de um trabalho feito cuidadosamente, com bastante paciência. Sempre que se faz uma novela a gente tem de deixar uma infinidade de possibilidades para o autor criar em cima e a gente desenvolver ainda mais. Como essa é minha 45.ª novela, tenho experiência nesse sentido. Nunca conduzo meu trabalho de maneira fechada. Novela é um produto que vive do gosto do público e varia de dois em dois meses. O ator precisa ficar atento.

P – Em sua novela anterior, Sete pecados, seu personagem também ganhou importância no decorrer dos capítulos. Atores experientes como você são a salvação para novelas frágeis ou inconsistentes?

R – Não vejo assim. Em Sete pecados o personagem cresceu de maneira diferente. A história de um amor fora de época, em uma idade mais avançada, era interessante. Ab,racei aquilo com entusiasmo e a Nicete Bruno, que era minha parceira, também. A maioria dos telespectadores concluiu que essa história era verossímil e daí veio a repercussão. Mas em A favorita o personagem foi sendo construído a partir das várias etapas que a novela teve. Não acho que a novela ou os autores passem por uma crise, como dizem por aí. O que acontece é que o mundo está mudando muito e as pessoas estão com uma certa dificuldade de acompanhar o que acontece por causa da pressa de hoje em dia. Não conheço o João Emanuel Carneiro pessoalmente, por exemplo. Mas acho que ele sabe muito bem o que quer e o Silveirinha já é um dos personagens mais importantes de minha carreira.

P – Você também já se decepcionou com personagens?

R – Vários personagens que fiz não foram aproveitados como deveriam, mas o problema não foi meu, foi do autor. Alguns autores perderam a oportunidade de me fazer desenvolver um bom trabalho. Ator é um instrumento do autor.

P – Aos 75 anos, 60 deles dedicados à atuação, e em sua 45.ª novela, ainda há muita coisa que você não conseguiu realizar?

R – Vivo do presente, do passado só recolho o que foi bom e não planejo personagens para o futuro porque o amanhã não me pertence. Nunca deixei de trabalhar na Globo, onde estou há 43 anos. Já estou escalado para um próximo trabalho, Caras e bocas, com um personagem completamente diferente do que faço agora. Sempre haverá espaço para os atores veteranos e não acho que nossa profissão seja cruel com os mais velhos. As histórias precisam de tios, avôs… Não tenho do que reclamar.

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