Com Spirit, Will Eisner inovou a linguagem dos quadrinhos: levou para os gibis o expressionismo e a sofisticação, com técnica cinematográfica. |
Com a morte de Will Eisner, neste 3 de janeiro, em Fort Lauderdale, Flórida, EUA, os quadrinhos perderam um de seus últimos grandes mestres. E com ele se encerra boa parte da história de uma época dourada dos gibis, em que era possível aliar, sem nenhuma dificuldade, talento, beleza, inteligência e criatividade.
Mas, além de genial criador, refinado desenhista, crítico mordaz e fino humorista, Will Eisner foi, sobretudo, um revolucionário. Inovou os comics norte-americanos, deu charme à chamada arte seqüencial e fez das novelas gráficas, uma das suas muitas invenções, um sucesso de crítica e de público.
O Espírito
The Spirit, de 1940, foi, certamente, o mais popular personagem saído da prancheta de Eisner. Com ele, Will zombou dos super-heróis americanos, sempre poderosos e infalíveis. Era um sujeito comum, sem nenhum poder. Nem mesmo uniforme tinha. Usava, isto sim, terno e gravata. E chapéu, como mandava o figurino da época. Para disfarçar, apenas uma pequena máscara negra em torno dos olhos. Mas era uma figura misteriosa, a começar pelo endereço: morava no Cemitério Wildwood, nos arredores de Central City.
"Como todas as boas idéias já tinham sido usadas, Denny Colt teve que se virar como pôde", contaria o autor. "Sem poderes, sem superuniforme capaz de lhe dar alguma vantagem sobre as pérfidas forças do mal, ele tinha que combater o crime correndo o risco de se arrebentar. Afinal, era de carne e osso como qualquer humano".
Segundo o jornalista e quadrinhólogo Álvaro de Moya, grande amigo de Eisner, The Spirit está para os comics como Cidadão Kane, de Welles, para o cinema: "Uma obra absolutamente genial. Tomadas, fusões, cortes, ângulos insólitos, o uso do som e das sombras, em linguagem visualmente revolucionária. Tudo isso apoiado em textos e situações que lembram Maupassant, Tchecov e O. Henry".
Graphic novels
Eisner (à direita) com dois de seus amigos brasileiros: Ziraldo e Maurício de Sousa. |
Quando aposentou The Spirit, em 1952, Will Eisner passou 25 anos aplicando a arte dos quadrinhos a outras áreas, particularmente a educação e o treinamento. No entanto, no final dos anos 70 voltou com força total, entregando ao público uma nova forma de expressão ilustrada, as chamadas graphic novels. E foi através desses romances gráficos, primoroso trabalho de arte, crítica e ironia, que Eisner atacou de verdade o sonho norte-americano de grandeza e poder, onde não há lugar para os fracos e desvalidos. Para tanto, valeu-se, particularmente, de sua experiência pessoal, quando criança, vivida nos cortiços nova-iorquinos, onde, no mais das vezes a miséria moral/social se entrelaça com a poesia.
Assim foi em Um Contrato com Deus (Brasiliense, 1988), New York – A Grande Cidade (Martins Fontes, 1989), O Edifício (Abril, 1990), No Coração da Tempestade (Abril, 1996), O Último Dia no Vietnã (Devir, 2001), O Nome do Jogo (Devir, 2003) e Avenida Dropsie (Devir, 2004).
"Ao contar essas histórias, que, em essência, não são diferentes das do mundo de hoje para pessoas que moram em lugares apertados, em prédios sem personalidade e abarrotados de gente, tentei permanecer dentro das regras do realismo, limitando as caricaturas e os exageros aos fatos", explicou Eisner.
Um Contrato com Deus mostrou ao mundo a face oculta dos cortiços nova-iorquinos e inaugurou novo conceito de narrativa quadrinizada, a novela gráfica. |
Paralelamente, Will Eisner dedicou-se à adaptação livre de clássicos da literatura mundial e clássicos dos contos de fadas, como O Último Cavaleiro Andante, A Baleia Branca, A Princesa e o Sapo e Sundiata – Uma Lenda Africana, editadas no Brasil pela Companhia das Letras.
No momento, Eisner trabalhava em The Plot, focalizando os polêmicos Protocolos dos Sábios do Sião, uma conspiração forjada na Rússia, no início do século passado, culpando os judeus pelos males do mundo, que deverá sair ainda este ano nos EUA pelo selo Norton e, mais tarde, no Brasil, pela Devir, atual detentora dos direitos sobre a obra do autor. Também este ano deverá ser publicada a autobiografia Will Eisner: A Spirited Life, pela Dark House Comics.
Do Brooklyn ao mundo
Filho de imigrantes judeus, William Erwin Eisner nasceu no Brooklyn, em 3 de junho de 1917. Conhecia a sua cidade como poucos, amava-a, mas escolheu para viver, desde há muito, a pequena e tranqüila cidadezinha de Tamarac, na ensolarada Flórida. Ali viveu os seus últimos anos com a mulher Ann, companheira inseparável por quem confessava amor eterno.
Aprendeu os primeiros traços e fez as primeiras tentativas com o pincel na De Witt Clinton High School, no Bronx, e em 1936 estreou na revista WOW What a Magazine! Quando abriu o seu primeiro estúdio, acolheu jovens desenhistas, iniciantes na carreira, oferecendo-lhes a oportunidade de exercer o seu talento. Entre eles, Bob Kane, que seria o pai de Batman; Jack Kirky, o genial criador gráfico de super-heróis, como Capitão América e Surfista Prateado; e o haitiano-brasileiro André LeBlanc, que se notabilizaria na quadrinização de romances brasileiros para a Ebal, de Adolfo Aizen.
Aliás, Eisner tinha grandes e fraternos amigos no Brasil, onde costumava vir com certa freqüência, para participar de eventos e lançamentos de sua vasta obra. Entre eles, o já citado Álvaro de Moya, Ziraldo e Maurício de Sousa.
Em 1988, Will emprestou o seu nome para o mais importante troféu conferido aos criadores e desenhistas norte-americanos, o Eisner Awards, equivalente em prestígio e popularidade ao Oscar do cinema.
Will Eisner faleceu aos 87 anos, em decorrência de uma cirurgia no coração. Não houve funeral, já que ele sempre se manifestara contra essa prática. Foi simplesmente enterrado ao lado da filha Alice, que morreu em 1969.