A leitura alternativa da Odisséia de Homero pode trazer muitas surpresas àqueles que consideram esta como uma leitura chata e difícil. A Odisséia de fato é um livro fabuloso. Não só pela história em si, mas pela construção apresentada, a qual percorre trajetórias modernas, quando apresenta tempo e espaço simultâneos, dentro do universo real ou onírico das personagens. No entanto, é na narrativa interna que se encontra o mais importante de todos os segredos. Ou seja, tudo que se conhece sobre a viagem de Ulisses, ou tudo aquilo de que ouvimos falar, certa vez, em uma aula de literatura, pode vir a ter mais sabor quando percebemos que tudo não passou de invenção.
Inicialmente, sei que é redundância, mas é sempre bom lembrar que toda obra de ficção pressupõe invenção. E Odisséia vem a ser ficção duas vezes. Há, portanto, como bem destacou Ítalo Calvino, em seu livro Por que ler os clássicos, “uma Odisséia dentro da Odisséia”. Ou seja, uma narrativa dentro de outra narrativa. Por exemplo, Calvino afirma que o relato que Ulisses fez ao Rei dos feácios poderia ser mentiroso, pois o herói era um simulador de situações. Além de inventor de artifícios e astuto conhecedor de estratagemas, sua proposta estava vinculada a reconstruir o caminho de volta, a ele foi confiada a missão de retornar.
Embora um clássico, no sentido maior da palavra, a construção da Odisséia remete aos textos contemporâneos, quando perpetua a discussão do processo narrativo, da invenção e suas conseqüências. Nesse sentido, respaldando a afirmação de Calvino, é possível encontrar na Odisséia um trecho em que a deusa Atena orienta Ulisses que assim que regressasse a Ítaca, não se expusesse de imediato, mas que cumprisse a promessa de exterminar os pretendentes de Penélope. Assim, quando o herói chega à ilha e ainda não a havia reconhecido, encontra-se com Atena que se disfarçara de um jovem pastor de ovelhas. Atena, para testar Ulisses, pergunta-lhe quem era, mas por precaução, ele não diz a verdade sobre a sua identidade, que já estava para revelar “pois revolvia em seu íntimo astutos planos” e inventou outra história. Na seqüência, quando a deusa volta à forma de uma bela mulher e lhe diz: “De fato, mesmo um deus precisaria ser de uma finura perfeita para te superar em toda espécie de astúcias! Ó incorrigível inventor de mil planos, insaciável criador de ardis, nem mesmo na tua terra abandonas as fraudes e as conversas mentirosas de que gostas tanto desde a infância […]” (Homero, 1960:220), verifica-se a farsa.
Ou seja, esta passagem vai aparecer depois que o leitor, mesmo desconfiado, já está quase acreditando em todas aquelas narrativas feitas pelo personagem. É neste momento que tudo vem abaixo, mas ao mesmo tempo consolida a importância da narrativa de viagem como documento histórico. Significando que o historiador-viajante narra aquilo que viu a partir de sua perspectiva, visão de mundo, cultura, etc. Revelando inclusive a pertinência da narrativa oral, importantíssima naquela época. Se o narrador inventou ou não, não tem a mínima importância. O essencial é a concretização do narrar. Ulisses foi grandioso nesse aspecto.
A Odisséia traz outras histórias dentro de sua história. São inúmeras faces reveladas pelos deuses e pelo personagem Ulisses, as quais determinam a construção em cascata, figura que bem se aplica neste caso, por representar inesgotável correnteza.
Aos mais jovens, portanto, é aconselhável ler a Odisséia de Homero, imprescindível para os estudiosos; com certeza outras portas se abrirão, neste caminho tão apaixonante que é o da literatura.
Maria Helena de Moura Arias é jornalista e mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Estadual de
Londrina.helenarias@uel.br