A tecnologia conseguiu o feito desejado, mas não conquistado, no dia a dia: unir no palco os três membros da família Pitanga. Assim, na peça Embarque Imediato, em cartaz no Sesc Consolação, o pai Antonio contracena com o filho Rocco e, por meio de um telão, com a imagem da filha Camila. “Não é o ideal, pois queremos estar todos juntos fisicamente”, diz a atriz, que participa da montagem Por Que Não Vivemos?, que volta ao Teatro Cacilda Becker no dia 20. “Agora, estamos animados para realizar esse desejo.”
A presença dos três em palcos paulistanos (que Camila ironicamente classifica como Ocupação Pitanga) mantém uma tradição que há décadas é marcante no teatro: famílias de artistas contracenando as mesmas peças. De Bibi Ferreira e seu pai, Procópio, até chegar aos Goulart (Paulo, Nicette, Beth, Bárbara e Paulo Filho) e às Fernandas (Montenegro e Torres), entre tantos outros, são diversos os exemplos em que a intimidade do lar se estende até a ribalta.
“Há uma cumplicidade que favorece o trabalho, pois as observações são verdadeiras, mesmo as que não agradam”, conta Rocco, durante um encontro com o pai e a irmã, a convite do Estado. “Especialmente nesse atual momento, em que encenamos peças que trazem questões semelhantes sobre a busca da identidade”, completa Camila.
De fato, se em Embarque Imediato o encontro entre um jovem negro doutorando brasileiro e um senhor africano em uma sala de aeroporto serve para mostrar como a diáspora separou idosos dos jovens, Por Que Vivemos?, de Chekhov, trata de assuntos como o conflito entre gerações, as transformações sociais por meio das mudanças de cada indivíduo e o legado para a posteridade. “São dois trabalhos que trazem questionamentos semelhantes nesse momento de impasse”, observa Antonio que, com a peça, continua festejando seus 80 anos, celebrados em 2019.
“Ele é nosso farol”, comenta Camila, que iniciou na carreira artística a contragosto do pai. “E, vendo o trabalho dela no Teatro do Tablado, no Rio, eu também decidi me tornar ator”, diverte-se Rocco. É comum, aliás, alguns pais artistas desejarem que os filhos assumam outras profissões, menos irregulares do ponto de vista econômico e emocional – a grande Marília Pêra, por exemplo, que tinha pai, mãe e tio atores teatrais, costumava lembrar que o patriarca Manoel sonhava vê-la como pianista clássica. Mesmo assim, segundo lenda familiar, ela entrou em cena pela primeira vez quando tinha apenas 19 dias de vida.
O exemplo paterno, portanto, determinou o surgimento de novas carreiras. Camila relembra o fascínio com que observava os trabalhos de Antonio, seja no cinema ou no palco. “Com ele, descobri que o teatro é um lugar de proteção e fortalecimento. Que, quando se observa a representatividade dos outros, existe diálogo.”
O comentário ecoa entre outras famílias de artistas. “Basicamente, as tarefas são as mesmas – o que muda é que compartilhamos a alegria de fazer parte do mesmo trabalho, contribuímos para contar a mesma história”, conta Beth Goulart que, quando procurada pela reportagem, estava justamente cuidando de um novo projeto ao lado da mãe, Nicette Bruno. Entre os trabalhos que já realizaram juntas, destaca-se Somos Irmãs, de 1999, sobre o dolorido fim de carreira das cantoras Linda e Dircinha Batista. Enquanto Nicette vivia uma Dircinha já veterana e resignada, Beth se projetava como a jovem Linda, antecipando a mulher revoltada em que se transformaria.
“A convivência ajuda pela afinidade que sentimos e pelo sentimento de querer o melhor para quem amamos”, continua Beth. “É uma parceria de talentos e desejos comuns, o que acaba sendo uma vantagem. Buscamos sempre uma sintonia nas relações, uma parceria de ideias. Cada elenco que se forma é como uma nova família que se forma também.”
Camila Pitanga concorda e prossegue a linha de raciocínio ao perceber o palco como o espaço onde é possível apresentar as próprias inquietações. “Na peça que enceno, surgem mulheres que estão engatinhando nos questionamentos sobre os próprios direitos – a trama se passa no século 19. Mas já existe ali uma perplexidade que independe de gênero: afinal, o que fazemos da nossa existência?”
Antonio e Rocco acompanham atentos os argumentos da atriz. “É isso mesmo. Quando assisti à sua peça, vi a proximidade com a minha e de Rocco: a discussão sobre os motivos da interação humana”, diz o veterano ator que, ao chegar no local do encontro, o Teatro Cacilda Becker, lembrou-se de ter visto esta atriz em cena. “Vi Cacilda em seu último trabalho, Esperando Godot, em 1969”, disse ele, comentando ainda sobre o derrame cerebral que, dias depois, em outra sessão, a impediu de voltar para o segundo ato, sendo levada às pressas para o hospital vestindo as roupas da personagem.
Antonio Pitanga conta que, nascido em 1939, é de uma geração que via o mundo estagnado, depois da Segunda Guerra Mundial. A reação só começou anos depois, à medida que novas conquistas eram anunciadas. “As mulheres passaram a ter seu voto equiparado aos dos homens somente em 1965, época em que os negros foram mais às ruas”, rememora, orgulhoso de que sua experiência ajudou a maturar a caminhada artística dos filhos.
Sentimento semelhante ao sentido por Fernanda Montenegro, que dividiu o palco com a filha Fernanda Torres na célebre montagem de The Flash and Crash Days, peça escrita e dirigida por Gerald Thomas e estreada em 1991. “Sob todos os aspectos, um espetáculo memorável em nossas vidas”, escreve Fernandona em sua autobiografia Prólogo, Ato, Epílogo (Companhia das Letras). “Trago na memória o final do espetáculo: nós duas agressivamente nos enfrentando, entre ódio e amor, atirando cartas de baralho uma na outra, como pedras ou explosivos, ao som de Wagner.”
E conclui de forma a explicar o fascínio familiar: “Ao ver, num palco ou em filme, uma filha e um filho tocados pelo mesmo ofício desafiador de seus pais, penso que metade das nossas falhas no campo do relacionamento familiar foi entendida, aceita e perdoada. Não existe fato mais importante e abençoado”.