Pablo Trapero veio à Mostra para apresentar o novo filme, La Quietud. Viaja acompanhado pelo filho. Mateo tem 16 anos. “E já é cinéfilo. Gosta de ver e discutir os filmes, mas, por enquanto, o universo que lhe interessa é o da música, e do jazz.” Depois do êxito de O Clã, maior sucesso de sua carreira, Trapero sabia que o novo filme seria de aceitação mais difícil. Mesmo assim surpreendeu-se. “O Clã apontava para criminosos com quem ninguém queria se identificar, ou ser identificado. Era fácil ver todo aquele horror como algo que não nos pertencia. Aqui, os crimes são mais silenciosos. Têm a ver com cumplicidade. Na Argentina, tivemos uma diretora, Maria Luisa Bemberg. Fez um filme chamado De Eso no Se Habla, Disso não Se Fala – porque ninguém quer saber.”

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O crime a que Trapero se refere é documentado, mas pouco conhecido. Durante a ditadura militar, pessoas inescrupulosas fizeram fortunas se apropriando dos bens de presos políticos, forçados a assinar não importa o quê. Uma mulher que viveu afastada volta para a propriedade dos pais, perto de Buenos Aires. O pai sofreu um derrame, a matriarca tiraniza a filha que ficou ela. E as três, a mãe e as duas filhas, terminam por encarar velhos traumas – a forma sórdida como foi amealhada a fortuna familiar. O filme causou profundo mal-estar no país. O repórter arrisca – as duas irmãs são interpretadas por Martina Guzmán, mulher de Trapero, e Bérénice Bejo. São muito parecidas, como se fossem gêmeas. E a relação é incestuosa. Isso não terá pesado na rejeição do público?

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“Não é um filme sobre incesto, é um filme sobre o amor. As mulheres se amam e fortalecem para sobreviver aos pais.” Já era um pouco o tema de O Clã. “Mas aqui é diferente. O filme, em vez de La Quietud, poderia se chamar O Passado, como o do iraniano Asghar Farhani. Tudo o que essas pessoas fazem e precisam purgar no presente têm a ver com os traumas e crimes do passado.” Com a herança da ditadura. “Para meu filho, que não é um alienado, pois conversamos muito sobre esses assuntos em casa, a ditadura é algo distante, um capítulo nos livros de história. Mas se passarão muitas gerações antes que as feridas cicatrizem.” Bérénice Bejo, que atuava no filme de Farhadi, está no elenco por isso? “Em 2011, no ano de O Artista, fui a Cannes acompanhando Martina (Guzmán), que estava no júri. Fiquei impressionado com a semelhança de Bérénice com ela. Bérénice é casada com o diretor Michel Hazanavicius. Ficamos todos amigos, e apesar das diferenças a história de um casal de diretor e atriz franceses não é tão distinta de outro casal similar de argentinos. Escrevi o filme, propus, Bérénice topou e aí está.”

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Duas belas atrizes, e tem a figura da mãe. O empoderamento feminino. “Trabalho com instinto e só o que posso dizer é que havia um feeling. O filme chega no momento certo.” A matriarca é interpretada pela icônica Graciela Borges, que já teve um papel parecido em La Ciénaga, O Pântano, de Lucrecia Martel. O repórter conta a Trapero que tinha a idade de seu filho – 16 anos – quando viu Graciela pela primeira vez na tela, em Pele de Verão, de Leopoldo Torre-Nilsson. “Foi o cinema que me formou, o dos anos 1950/60. O cinema da classe dirigente, que abordava seus problemas, seu enfados.” Trapero destaca a generosidade de Graciela – “É uma diva, mas não apenas aceitou a visão desglamourizada que lhe propunha como embarcou na nossa aventura de corpo e alma. Cinema para mim é experiência, é processo. Queria investigar essas personagens, sua culpa, seu silêncio cúmplice. E queria que interagissem essas atrizes de gerações, temperamentos e origens diversos. A experiência foi muito rica, estimulante.”

Com uma carreira que já se estende por quase 20 anos no longa – Mundo Grúa é de 1999; O Outro Lado da Lei/El Bonaerense, de 2002 -, Trapero pode ter seguranças no seu ofício, mas ainda se emociona com o que lhe diz o repórter. Ao entrevistar Fernando Solanas, que também está na Mostra – com Viaje a Los Pueblos Fumigados -, o repórter lhe perguntou de quem gostava nas novas gerações do cinema argentino. A resposta foi – Trapero, Damiásn Szifrón (de Relatos Selvagens). “É um elogio que, sinceramente, conta muito para mim. Pino (o apelido pelo qual Solanas é conhecido) é um maestro.” Como cinéfilo, o cineasta carrega seus mestres e as referências atravessam seus filmes. “Pensava muito em Luis Buñuel, a propósito de La Quietud. O Buñuel de El/O Alucinado. Um melodrama perverso, no qual o absurdo é permanente como representação do mundo. E também (Alfred) Hitchcock, Janela Indiscreta. O policial, o suspense e, para mim, o amor proibido (de James Stewart pela mulher de sociedade, Grace Kelly).”

Ele ri quando o repórter lhe pergunta sobre a recepção ao filme no Festival de Veneza, em setembro, e lhe diz que ele agora virou um ‘garoto do Lido’, depois de ter sido durante muito tempo um diretor de Cannes. “Na verdade, foi um retorno a Veneza. Antes que O Clã fosse premiado, foi lá que meus primeiros filmes nasceram para o mundo, foi lá que ganhei meus primeiros prêmios.” Embora crítico da situação na Argentina, ele não é pessimista. “Talvez seja ingenuidade de minha parte, já que temos hoje o juro mais caro do mundo, mas tenho por natureza ser otimista. Creio muito que, a despeito de toda crise, teremos um futuro.” Para ele, a solução está vindo pelas séries. Trapero tem em andamento um projeto já filmado e em montagem com a Amazon e 2019 serás dedicado inteiro a uma minissérie global da HBO que o levará à África, à Europa e ao México e EUA. “Vai ser bem intensa”. Resume.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.