O espetáculo começa e 18 bailarinos, nove homens e nove mulheres, surgem nus no palco, executando uma marcha. Aos poucos, a surpresa com os corpos despidos vai se diluindo e o público, agora magnetizado pelo ritmo cada vez mais intenso, ligeiramente incômodo, totalmente absorvente, se esquece da falta de figurino. Assim tem início Tragédie, criação do coreógrafo e bailarino francês Olivier Dubois para a companhia Ballet du Nord, destaque da 9ª Bienal Sesc de Dança, que começa nesta quinta, 17, em Campinas, espetáculo que também será apresentado no Sesc Pinheiros nos dias 20 e 22.
A retórica da tragédia grega antiga inspirou Dubois, que prega uma liberdade revoltada. “A nudez é um elemento essencial de Tragédie, mas o espetáculo não fala de nudez”, conta o coreógrafo, em entrevista por e-mail. “A nudez permite ser intimamente sensibilizado por aquilo que é interpretado. Permite a introspecção, é um anzol para a intimidade.”
Tragédie encerra uma trilogia iniciada com Révolution (2009) e continuada com Rouge (2011). Em todos os espetáculo, a revolta é a marca mais constante. Revolta contra as sensações do mundo, cada vez mais desumano. Quando estreou em 2012, no Festival de Avignon, Tragédie foi recebido com aplausos entusiasmados e críticas empolgadas. Mesmo assim, a trajetória desde então tem sido tortuosa – em outra cidade francesa, La-Roche-sur-Yon, a extrema direita do partido da Frente Nacional tentou impedir a apresentação. E, em Israel, havia uma campanha contra o espetáculo e, somente depois da estreia, percebeu-se ser um grande momento artístico.
A surpresa está nos movimentos – Dubois submete o corpo nu de seu elenco a uma repetição que se modifica sutilmente até provocar uma liberação explosiva. Aos poucos, a fácil distinção de cada bailarino torna-se ofuscada, até todos se transformarem em uma massa em movimento – a revolta une, agrupa.
O coreógrafo sabe que trabalhou em um campo minado, especialmente ao optar pela nudez completa. Até mesmo entre os bailarinos foi preciso fazer um trabalho de adaptação para que a falta de figurino fosse encarada como normal. Para isso, Dubois trabalhou primeiro com homens separados das mulheres até atingir um grau de segurança que possibilitou a união do grupo.
Dubois já esteve antes no Brasil, em 2001, como bailarino do espetáculo MC 14/22 (Ceci est mon Corps), de Angelin Preljocaj. Ele também atuou com o Cirque du Soleil e vislumbrou o auge da carreira como dançarino com Je Suis Sang, de Jan Fabre, destaque do Festival de Avignon de 2001. Sobre o assunto, Dubois respondeu ao jornal O Estado de S.Paulo.
Por que basear o espetáculo no coro da tragédia grega?
O coro na tragédia representa a interface entre o público e os atores, permite a compreensão das ações. Situar essas mulheres e esses homens em um coro pensante, ou seja, de portadores individuais de raciocínios singulares em um ímpeto comum, é encarnar o que há entre obra e público.
Por que ser humano não basta para se ter humanidade?
Talvez a humanidade seja um conceito. A menos que não seja um ideal de razão de ser. Em resumo, o simples fato de ser humano não torna humano e aí está nossa tragédia. A humanidade exige um engajamento pessoal constante, ela é esse jardim em que é preciso labutar sem cessar para não perder território.
A nudez dos bailarinos representaria uma espécie de espelho para a plateia?
A nudez é um elemento essencial de Tragédie, mas Tragédie não fala de nudez. A nudez permite ser intimamente sensibilizado por aquilo que é interpretado. Permite a introspecção, é um anzol para a intimidade. No momento em que se cria uma peça em que os intérpretes estão nus, é preciso ter uma consciência, uma vigilância acurada dos riscos que decorrem disso. Antes de tudo, protegi nosso espaço de trabalho, previ os incômodos, acompanhei as dúvidas. E, claro, expliquei e provei a evidência da nudez em Tragédie. Não esqueço jamais o esforço que a nudez demanda. Na verdade, nunca houve sentimento de incompreensão, de mal-estar.
Por que o espetáculo se inicia com uma marcha cujo ritmo vai crescendo?
Mais uma vez, é o percurso do coro na tragédia grega, que começa por uma longa marcha (parodos) e termina por uma corrida (exodus).
Tragédie já foi exibido em diversos países, com diferentes reações. O que espera do público brasileiro? A relação que o brasileiro tem com o corpo favorece uma aceitação mais imediata?
Evidentemente, não posso presumir qual será a recepção do público brasileiro. Eu e toda minha equipe estamos extremamente curiosos por saber como será. Mas é verdade que os brasileiros têm uma relação com o corpo única no mundo, então a recepção aí também deverá ser única no mundo. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.