Interpretar Brahms é tarefa cotidiana de qualquer orquestra sinfônica, mas não muitas podem ostentar no currículo ter tocado obras do compositor sob sua própria regência. É o caso da Orquestra Filarmônica de Dresden, que também esteve sob a batuta de Tchaikovsky.
A palavra tradição vem logo à mente. Mas como, quase 150 anos depois, mantê-la viva? Foi exatamente a pergunta que um grupo de músicos se colocou ao criar a Orquestra Filarmônica Jovem Alemã, formada por músicos de 18 a 25 anos, com um objetivo: manter viva nas novas gerações a chama da criação musical do passado.
As duas orquestras desembarcam este mês no Brasil. A primeira delas é a Filarmônica de Dresden, que toca nesta segunda, 3, e terça, 4, na Sala São Paulo, pela temporada da Cultura Artística, que também promove, no dia 12, a apresentação, no mesmo palco, da Filarmônica Jovem Alemã. O grupo de Dresden vem ao País acompanhado de seu diretor musical, Michael Sanderling, filho do lendário maestro Kurt Sanderling e ex-aluno de Kurt Masur. O conjunto de jovens artistas, por sua vez, será comandado por seu titular, Jonathan Nott, que volta ao Brasil após elogiados concertos no primeiro semestre com a Orchestre de la Suisse Romande.
“A Filarmônica de Dresden naturalmente busca levar grandes obras de sua história a seus programas”, diz Sanderling. O pianista Herbert Schuch, por exemplo, vai interpretar os concertos nº 20 de Mozart e nº 5 de Beethoven, de quem o grupo toca ainda a Abertura Coriolano. Mas, no concerto desta segunda, Sanderling rege ainda a Sinfonia nº 12 do russo Dmitri Shostakovich – e a escolha tem a ver com a maneira como o maestro, que começou a carreira como violoncelista, entende o sentido da tradição.
“Você só pode manter o valor de suas tradições se permanentemente se dedicar a reavaliá-las. E isso significa buscar sempre novos aspectos na hora de apresentar peças tão conhecidas”, ele explica. “Estamos, por exemplo, terminando um ciclo com todas as sinfonias de Shostakovich, que será lançado em uma caixa no primeiro semestre do ano que vem. E parte dessas obras foi combinada com Beethoven para mostrar a forte conexão que pode haver entre esses dois autores, o primeiro o último dos sinfonistas.”
Em outros países da América Latina, o grupo vai apresentar duas obras contemporâneas, de Oscar Strasnoy e Detlev Glanert, que se inspiraram nas sinfonias nº 8 de Beethoven e nº 4 de Brahms para escrever suas obras. A música nova também é parte do dia a dia da Filarmônica Jovem Alemã, que desde sua criação entende a estreia de obras como uma das formas de manter vivo o sentido da atividade musical. Na turnê brasileira, no entanto, a escolha de peças recaiu sobre duas emblemáticas sinfonias: a nº 1 de Mahler e a nº 4 de Brahms.
A escolha, explica o britânico Jonathan Nott, se deu após conversas com os músicos. “Eu não me entendo como um diretor artístico no sentido de determinar os rumos do grupo, pelo contrário. Eu sou um conselheiro, alguém com quem esses músicos podem conversar. Foi assim que decidimos levar para a turnê as peças de Mahler e Brahms. Esses jovens artistas se entendem como parte de uma tradição musical que os define de alguma forma, e Mahler e Brahms são símbolos desse passado. A questão central, no fundo, é essa. Desde pequenos, esses músicos trabalham com peças de Haydn, Mozart, Beethoven, e assim por diante. Mas qual o sentido prático disso? O que isso quer dizer exatamente? É preciso pensar sobre isso se você assume como uma das suas funções manter essa chama viva.”
A resposta, para Nott, passa pela filosofia, pela associação entre música e ideias. Como regente, diz ser sua função articular ideias no contato com os músicos e o público. “A maior parte das sinfônicas mundo afora pode tocar sem um maestro, então eu preciso pensar para que estou ali. E acredito que minha função seja criar uma atmosfera em que todos podem dar o melhor de si, juntos, ousando sair da zona de conforto na relação que têm com as peças. No caso de uma orquestra formada por jovens, preciso tentar mostrar a eles quão longe podem ir nesse processo, os guiando a lugares desconhecidos. Um músico de 18 anos que toca Mahler pela primeira vez precisa lidar com a ideia da morte, por mais distante que ela possa parecer a ele. É daí que vem um sentido de descoberta que jamais pode se perder”, afirma. “A filosofia alemã não é a mesma que a filosofia francesa ou japonesa, cada cultura elegeu temas e questões diferentes – e isso é fascinante, porque, quando você considera o individual, o local e o global, misturando tradições, você chega a uma metáfora da humanidade.”