‘Tomorrowland’ subverte a ideia de futuro que o cinema costuma vender

E se o personagem de Hugh Laurie em Tomorrowland – Um Mundo onde nada É Impossível tiver sido inspirado no lado sombrio de Walt Disney? Quem levanta a possibilidade é o roteirista Damon Lindeloff, que trabalhou com o crítico e agora produtor Jeff Lensen. Esse último teve acesso a arquivos pessoais de Walt Disney remetendo ao projeto de criar o mundo futurista (Tomorrowland) de seu parque temático. O filme de Brad Bird nasceu como uma encomenda da Disney para promover seu parque temático, como a franquia Piratas do Caribe. Mas Bird, Landeloff e Lensen juram que nunca houve pressão comercial para lincar o filme (e seu roteiro) à terra do futuro do velho Walt. O que fizeram foi por iniciativa própria. Você já deve ter ouvido/lido que Tomorrowland é uma súmula/síntese de várias fantasias científicas. Tomaria muito tempo enumerá-las todas, de Star Wars a Matrix e Hugo Cabret. É curioso, mas, citando tantos filmes, os que o fizeram se esqueceram dos dois mais importantes, e são filmes do próprio Brad Bird.

Rememorando

Bird foi/é um dos quatro mosqueteiros da Pixar, com John Lasseter, Pete Docter e Andrew Stanton. Realizou a obra-prima do estúdio, Ratatouille, embora essa seja uma afirmação deveras pessoal. Outros hão de preferir Toy Story, Procurando Nemo e até Os Incríveis. Bird tem uma trajetória singular. Fez a passagem da animação (Ratatouille) para a live action (Missão Impossível – Protocolo Fantasma). Ratatouille era sobre rato que saía do esgoto para realizar o sonho de virar chef. Sua história passa-se numa Paris de sonho e… Ops, Paris vira personagem de Tomorrowland e a torre de Gustave Eiffel chega a ser peça propulsora (em mais de um sentido) da trama. E como Protocolo Fantasma, Tomorrowland aposta no renascer (não na igreja). Na aventura com Tom Cruise, a luta do herói era para recuperar a agência e a mulher. Aqui, George Clooney e as duas garotas (a de verdade e a que é robô, ops!, Metrópolis, não?) lutam por algo maior ainda. Reconstruir o mundo.

Os cínicos não hão de reconhecer a autoria visceral de Bird e talvez vejam em Tomorrowland apenas mais uma fantasia destinada a celebrar o gosto hollywoodiano pela segunda chance. Azar deles. A ousadia, que alguns tomam por conformismo, do longa, está em subverter a ideia que o próprio cinema tem nos vendido do futuro. Se nem robôs maléficos nem monstros intergalácticos destruírem o amanhã, você pode estar certo de que os mortos-vivos o farão. Brad Bird ousa acreditar que talvez exista um amanhã – parece título de romance de J. Simmel. Ele mostra o esforço de um trio – um garoto que virou um cientista amargurado, uma menina-robô e outra menina tão especial que vai mover os outros dois – para salvar o amanhã. Cria uma interpretação. Faz do personagem de Hugh Laurie, o Dr. House, a concretização acabada dessa ideologia apocalíptica.

Se a esperança num futuro possível incomodar e até decepcionar os arautos do fim, Tomorrowland realmente não será filme para eles, mas daí a considerar Bird e seus parceiros (Landeloff e Lensen) ingênuos ou comprometidos com valores escusos vai uma diferença enorme. Bird é um ‘autor’. Acreditava tanto no projeto ao qual dedicou seus últimos anos que declinou de dirigir o novo Star Wars. Ele admite que teria sido interessante formatar a nova trilogia da série mítica de George Lucas, mas passou o bastão para JJ Abrams, convencido de quer tinha de fazer Tomorrowland. O estúdio ainda tentou negociar – estudou postergar a produção de Star Wars – The Force Awakens por seis meses, mas Bird bateu pé e exigiu um ano. Talvez tenha sido melhor para todos. Bird concluiu Tomorrowland, Abrams assumiu The Force Awakens. Tomorrowland foi mal de público nos EUA. E daí? Se o sucesso de um filme não é critério para avaliar suas qualidades, o fracasso, muito menos.

São muitos os casos de filmes adiante de sua época, ou que não estão em sintonia com sua época. Alguns dos experimentos mais interessantes de Hollywood com tecnologia digital não aplicados a shows de efeitos foram filmes de Michael Mann que fracassaram na bilheteria – Miami Vice, Inimigos Públicos – e marginalizaram o autor mais complexo de sua geração. Se os robôs destruíssem de vez a Terra do Futuro ou se seus últimos habitantes virassem zumbis, o público e os críticos talvez gostassem mais de Tomorrowland – seria ‘realista’ -, mas também seria a vitória de uma ideologia ‘das trevas’, contra a qual Bird se insurge. Já havia sido assim em Ratatouille. O rato, vencido o nojo – símbolo da suprema ‘diferença’ -, realiza seu sonho. Ethan/Tom Cruise refunda a agência (e recupera a mulher de ‘entre os mortos’, Alfred Hitchcock). E Brad Bird, que vai voltar à Pixar para fazer o novo Incríveis, pode comemorar. Nos últimos anos, raríssimos foram os filmes que, em Hollywood, ultrapassaram a barreira dos US$ 100 milhões (Avatar, Gravidade, Interstellar) sem ser continuações. Tomorrowland, como fantasia de ‘sonhadores’, pode não ser tão grande quanto o diretor sonhou, mas certamente não é um filme grande que não deu certo, como sustentam seus detratores.

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