Todo o peso da alma

Chega hoje aos cinemas o segundo longa do autor de Amores Brutos, Alejandro González Iñárritu. E 21 Gramas confirma o seu talento. Todo aquele punch do primeiro filme, toda aquela energia incendiária, aquela inteligência de linguagem, não eram fogo de palha. Eram expressão de estilo.

Tanto é que 21 Gramas apresenta a mesma tonalidade estilística, com maior densidade, apesar de ter sido feito nos Estados Unidos, e com astros famosos como Sean Penn, Benicio del Toro e Naomi Watts. Quer dizer, ao cruzar o Rio Grande, rumo ao norte, Iñárritu não perdeu sua alma.

E é de alma que ele trata nesse novo filme. O título meio estranho se refere à lenda que diz que na hora da morte o corpo fica “21 gramas” mais leve. Seria o peso da alma, que se vai? O que é a alma, essa essência desvalorizada, ou usada apenas como vaga metáfora? No entanto, ela já esteve no centro não apenas da religião, mas da filosofia.

Essas almas em transe se hospedam nos corpos de Paul (Sean Penn), um professor de matemática com o coração em pandarecos, Christine (Naomi Watts), uma antiga dependente de drogas, e Jack (Benicio del Toro), ex-presidiário reconvertido à religião. Há uma idéia comum entre Amores Brutos e 21 Gramas – a de que o acaso põe personagens em contato, e depois esse relacionamento fica regido por uma lógica trágica. Nos dois filmes, esse acaso é um trauma, um acidente. De carro, em ambos.

Em Amores Brutos, um carro dirigido por marginais em fuga atinge o de uma mulher e ela perde a perna no acidente. Em 21 Gramas é o ex-presidiário que, convertido à fé do Senhor, tem como certeza de que nada do que ocorre sob o céu deixa de expressar a vontade de Deus. Nem mesmo o fato de ele um dia estar dirigindo seu carro, atropelar um pai de família e suas duas filhas e matar a todos. Esse fato faz com que uma ex-drogada fique sozinha no mundo. E faz com que um professor, que nada tinha a ver com a história, ganhe coração novo, sobrevida e sentimento de responsabilidade perante a viúva. Destinos isolados se entrelaçam por efeito do acidente traumático.

Iñárritu não hesita em deixar o espectador no escuro durante algum tempo. Suas histórias vão se desenvolvendo em separado até começarem a formar um mosaico e assim ganhar sentido. Nessa formação em fragmentos, os ancestrais sentimentos humanos aparecem. Culpa, ódio, desejo, ressentimento, em narrativa dilacerada.

As partes do mosaico de Iñárritu vão sendo lidas separadamente, umas remetidas às outras. Se alguma totalização existe, ela está na cabeça do receptor do filme e não na obra. Deve ser construída, se for o caso, mas o filme indica que não existe totalização a priori. Não existe sentido nem finalidade, mesmo que, a partir do acidente, tudo pareça se passar dentro dos limites do estrito determinismo, como se fossem inevitáveis.

É um problema lógico – tudo parece inevitável quando visto depois, mas nada é inevitável se pensado antes. Isso vale para um acidente de carro em que as pessoas perdem a vida como para uma partida de futebol ou para a batalha que decide uma guerra.

Essa reflexão filosófica em torno do acaso e da necessidade está na base de 21 Gramas que, nem por isso, se torna um filme “intelectual”, no mau sentido do termo. Ao contrário, com sua estética de ruptura ele vai ao cerne da vida, com intensidade de tirar o fôlego. Tanto assim que rendeu o prêmio de melhor ator para Sean Penn no Festival de Veneza de 2003, no qual concorreu.

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