‘Tira Meu Fôlego’ dá lições de como construir o sublime

Tira Meu Fôlego faz o que anuncia: difícil não ficar naquele estado de espanto que estanca a respiração a cada vez que uma cena mais instigante que a outra vai sendo apresentada. E como elas são seis, haja fôlego. Elisa Ohtake (que concebeu, dirigiu e também atua) e seus cinco maravilhosos colaboradores criadores (Rodrigo Andreolli, Sheila Ribeiro, Raul Rachou, Cristian Duarte e Eduardo Fukushima, por ordem de entrada) fazem cintilar uma sequência de proposições surpreendentes, divertidas, provocadoras.

Se fosse necessário identificar, a tag seria “deslocamento”. Porque esta é uma legítima produção dos tempos de agora. Tem um pouco de teatro, mundo pop, artes visuais, one man show, stand up comedy, tudo cozido em um caldo de referências consagradas e, é claro, também de dança. O trabalho se organiza na convergência dessas e de outras mídias. Tira Meu Fôlego é o mais novo chafariz da pracinha da cultura digital, fazendo companhia para Receitas e Dúvidas, que Gustavo Bitencourt, Sheila Ribeiro e Wagner Schwartz produziram em 2012. Não porque faça dela o seu assunto, não porque esteja no campo da dança tecnologia; mas porque opera com o deslizamento e com a construção de pontes, tudo ao mesmo tempo. Tem piscina de bolinha e laser. Tem Sepultura e samba-enredo da Unidos da Tijuca.

Aqueles assuntos caros às artes do espetáculo estão todos lá, afilados e sorrindo de/para nós: autoria, colaboração, representação, narratividade, presença, multidão, expressividade, o que separa o moderno do contemporâneo, biografia, a relação entre aquecimento e performance, etc., etc. Mas vão ficando com cara de lembranças esculpidas no gelo.

Tira Meu Fôlego recoloca na prateleira, e, portanto, disponibiliza para consultas futuras, a pergunta sobre o que sucede com uma informação que está online e é vista por milhões de pessoas. Estes seis artistas simplesmente são as misturas dessa outra ordem, que agora pauta a criação: não trabalham os materiais como citações, nem referências. Talvez seja essa a beleza maior dos exemplos que estão lá: o Franko B. de I Miss You (2000) virou duas gotinhas de pimenta nos braços de Eduardo Fukushima; o Body Tracks (1982), de Ana Mendieta, toma outra trilha na parede pelas mãos de Elisa Ohtake; Martha Graham perfura o sublime da dança de Raul Rachou.

Um herói puído pelo desgaste, que tem algo de familiar? Cristian mostra. Vendo-o dançar, se crê em tudo o que ainda não foi dito. Uma imagem totalmente trans, sexualmente fetichista, que esbarra na dança do ventre e no funk, emoldurada/borrada pelo mel? Sheila faz. Rodrigo empilha movimentos vindos dos mais fundos alicerces da dança que vive fora dos palcos e faz deles íntimos enfeites. Cada corte preciso de Fukushima vai produzindo um novo rosto para seus movimentos, em um timing que transforma a força em impulso.

A trilha mais parece um Tratado sobre a Ambiguidade versão ponto 2014. Música popular tratada como clássica. Dolores Duran, Sepultura, Carly Simon, Jennifer Lopez, Tom Zé, Nazareth, Elza Soares, Roberto e Erasmo, etc., incluindo Take My Breath Away (Tira Meu Fôlego), com a banda Berlin. A cenografia e iluminação são da mesma materialidade que os textos que cada um deles diz: o rigor está resguardado pelo faro fino de uma química que modula ironia e astúcia.

A proposta de Tira Meu Fôlego é a de provar, em 1h30, como se dança quando se está apaixonado. Só podia mesmo produzir uma alegria inteiramente física. Pois é, como na paixão. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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