Thomas Mann, príncipe do romance universal

Confesso que só agora, e portanto tarde, muito tarde ( mas antes tarde que nunca… ), eu tive oportunidade de levar a cabo a leitura, mais de uma vez iniciada e mais de uma vez interrompida, desse genial romance de Thomas Mann que se intitula “José e seus irmãos”.

Como fator determinante dessas interrupções de leitura, logo nas primeiras páginas, funcionou uma espécie de prevenção inexplicável, ou um tipo de preconceito estúpido, como estúpidos são todos os preconceitos, contra romances de fundo histórico, bíblico ou mitológico.

Mais uma confissão, que me parece vir a talho de foice, como diriam Eça e Machado: antes de concluir a leitura de José e seus irmãos, o meu “ranking” privativo dos maiores romancistas do mundo(deixando de lado esse mestre “hors concours” que se chama Cervantes, o demiurgo do Dom Quixote), era encabeçado por Dostoiewski e Tolstoi. Só depois vinham o próprio Thomas Mann e Balzac, Dickens e Flaubert, Hesse e Stendhal, Proust e Joyce e “tutti quanti”.

Pois bem: lido o “José”, sou obrigado a reformular a minha visão axiológica, colocando Thomas Mann na condição de inequívoco “primus inter pares”. Na realidade, o “roman-fleuve” manniano representou um nítido “plus” estético, que me levou à necessária reformulação do meu “ranking”.

Esclareço que a “opera omnia” do grande alemão de Lübeck sempre me fascinou, com essas obras-primas que são Os Budenbrooks, A Montanha Mágica , Doutor Fausto , sem esquecer outros livros importantes como Sua alteza real, Morte em Veneza , Tônio Kroeger , O eleito e Mário e o mágico. E o meu fascínio derivava, para lá da altíssima qualidade estética da obra, de uma razão extra-literária: o fato de Thomas possuir claras raízes luso-brasileiras. É o próprio Mann quem informa, num texto auto-biográfico, “Sumário(ou esboço) da minha vida”, que sua mãe, brasileira, carioca, Júlia da Silva, era filha de português. Quer isso dizer que ele possuía, a par dos glóbulos nitidamente germânicos, outros indiscutivelmente latinos.

Ora, essa latinidade se projetou, de modo indelével, no seu temperamento, na psique, na sensibilidade transbordante, a ponto de condicionar aspectos relevantes da vastíssima obra ficcional manniana.

José e seus irmãos é por certo uma tetralogia poderosa, integrada por quatro províncias romanescas, que formam um único “país” ficcional: Histórias de Jacó, O jovem José, José no Egito e “José, provedor do Egito.

São diversos os contos que integram o Gênesis bíblico que Thomas retoma, reescreve e reinventa, com extraordinário engenho e arte . Segundo o dito popular, quem conta um conto acrescenta um ponto. E não há dúvida que Thomas acrescentou não um, mas milhares, dezenas de milhares de pontos. De tal maneira que o José bíblico não passa de rascunho ou embrião raquítico do pujante José romanesco, (re)criado pelo gênio de Mann.

Antes de mais nada, José e seus irmãos, escrito ao longo de dezesseis anos, é um prodígio de criatividade, um milagre de imaginação, estruturado em mais de duas mil páginas, densas e ricas, formal e conteudisticamente, prenhes de humanidade, em que a trama narratológica, a mecânica peripecial, a riqueza biopsicológica dos principais personagens, tudo isso é servido por uma super-estrutura formal incomparável, ou só comparável a esses arquétipos estilísticos que se chamam Flaubert, Stendhal e Proust. Isso graças a um instrumental lingüístico de primeira ordem que Mann exercita com uma espécie de volúpia criadora e embriagante.

“José”, mais do que um romance, mais do que uma obra ficcional bíblica por excelência, a um só tempo histórica e mitológica, simbólica e metafórica, é uma obra de extraordinária densidade humana e psicológica. Mas é também um longo poema em prosa, uma espécie de epopéia maiúscula em que o épico coexiste com o lírico. Se não for uma sinfonia verbal de acentos polifônicos, a um só tempo beethovianos ou mozartianos, mas sobretudo wagnerianos.

Expoente da “Kultur”, dono de uma erudição multifacetada e protéica, de perfil renascentista, latifundiário da inteligência, não apenas crítica mas analítica, usina nuclear onde se processa a fissão dos átomos da criatividade, incessante criador de beleza, numa palavra, gênio, Thomas Mann é hoje para mim, repito, o número um do romance universal. Muitos certamente concordarão comigo.

João Manuel Simões

é escritor.

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