Sabe aquela clássica história sobre como John Lennon se apaixonou perdidamente por Yoko Ono ao visitar uma exposição da artista em 1966 na Galeria Indica, e subir a escadinha da instalação Ceiling painting (instalação, aliás, que estava na exposição da japonesa no Centro Cultural Banco do Brasil, em novembro)?
Pois bem: tudo cascata. Na verdade, Yoko teve de perseguir Lennon por meses a fio para emplacar. Ela se juntou às hordas de fãs na frente de Kenwood, e um dia conseguiu entrar na casa simulando necessidade de um táxi, largando o anel perto do telefone (e, claro, teve de voltar para pegá-lo outro dia). Também freqüentou a escadinha da gravadora Apple, telefonou insistentemente para o beatle e encheu sua casa de cartas. Só em novembro de 1967 é que Lennon seria fisgado pela artista e deixaria definitivamente a mulher, Cynthia.
Lendas
Tudo isso e mais algumas coisinhas prosaicas são revelações que surgem nas páginas do novíssimo livro The Beatles – A biografia, de Bob Spitz (Larousse, 982 págs., R$ 99), talvez o mais importante trabalho sobre a história dos Fab Four já publicado. Primeiro, porque Spitz escreve bem pra caramba. Segundo, porque ele examina as contradições e coteja as lendas, e as usa para construir um retrato verdadeiro daqueles quatro rapazes de Liverpool desde que ainda se chamavam Quarry Men.
?Yoko tentou fisgar um dos Beatles – primeiro Paul, e depois John. Mas também acredito que o interesse de John nela foi completamente natural. Ela conseguiu divertir e cativar o interesse – e finalmente conquistá-lo?, disse o autor, Bob Spitz. ?Por muito tempo, John foi um homem muito frustrado – seu casamento com Cynthia, a quem ele não amava, e sua música e relações com os Beatles, dos quais ele se distanciava. Sua frustração o consumia. Yoko mostrou a ele o caminho e o libertou.?
Publicando a própria autobiografia, The Beatles anthology, lançada no ano 2000, os Beatles tentaram estancar diversas histórias de sua trajetória que não lhes agradavam. Por exemplo: em 1962, na época em que fizeram a primeira audição com sir George Martin, todos os quatro Beatles tinham pegado doença sexualmente transmissível (no mesmo ano em que as namoradas de Paul e John ficaram grávidas).
Homossexual
Em 1963, John Lennon ficou tão furioso com um comentário sobre uma suposta relação homossexual entre ele e o empresário Brian Epstein (?Ah, John e Brian acabam de voltar da lua-de-mel na Espanha?) que começou a espancar com as mãos, os pés e até uma pá de jardinagem o seu amigo Bob Wooler, numa festa na casa de uma tia de Paul, em Mersey in Huyton.
O homossexualismo do empresário dos Beatles é tema de um capítulo interessante do livro. Enquanto os Beatles trabalhavam no filme Os reis do iê-iê-iê (A hard day?s night), Brian Epstein contratou um jornalista do Daily Express, Derek Taylor, para escrever sua autobiografia. Taylor não teve receio de lhe perguntar e Epstein não teve receio de admitir (embora temesse pela repercussão disso na carreira da banda): ?Eu sou homossexual, sempre soube disso por toda a minha vida adulta, e não há nada que eu possa fazer?, disse.
Quando chegou a hora de escolher um título para o livro, Brian sondou os amigos. ?Por que não o chama de Queer Jew? (Judeu Gay)?, sugeriu Lennon, grosseiramente. ?Para satisfazer John, Brian deu um espetáculo de risadas contra a alfinetada. Ele provavelmente até gostou, em parte, de se ver humilhado publicamente por John – afinal, isso era um dos elementos de sua natureza sombria.?
Maturidade
Algumas dessas histórias podem até parecer irrelevantes, mas mostram como foi acontecendo a maturidade dos Beatles, que eram apenas garotinhos confusos no início e aprenderam na porrada, no meio de um turbilhão.
Bob Spitz (americano de Connecticut que escreve para o New York Times e para a Esquire e foi autor da biografia de Dylan) analisa a dificuldade extrema de um garoto manter a sanidade naquilo que viria junto com o sucesso. ?As criaturas mais belas do mundo desfilavam pelas suítes dos Beatles, sem restrição alguma; jovens e velhas, loiras e morenas, cheias e esbeltas, prostitutas e virgens. Eu achava que bebia e transava muito até conhecer aqueles caras?, disse um músico.
Aí tinha o lado tenebroso. Em Copenhague, um repórter do Express repreendeu Paul por sua negligência em responder a um telegrama que dizia: ?Criança morrendo nesta família, dois dias de vida, favor telefonar. Nome é Mary Sue?. Paul contra-argumentou: ?O mundo está repleto de tragédias. Os Beatles terão de remediar cada uma delas??.
Dureza
Que John Lennon, enquanto fazia planos de morar com Cynthia (que vivia uma vida de necessidades e estava grávida) em Londres, teve um romance tórrido com uma bartender do Star-Club, Bettina Derlin. Que John premeditava rebeldia. Por exemplo, quando os Beatles se apresentaram diante da rainha da Inglaterra: ele ensaiou o dia todo a frase que seria dita depois de Twist and shout: ?Nesta última canção, eu gostaria de pedir a ajuda de vocês. Os que estiverem sentados nos lugares baratos batam palmas. O resto sacuda a porra das jóias?. Acabou cortando o palavrão da frase.
Tem também muitas coisinhas. Por exemplo: que, para a gravação de Yellow submarine, foi levada ao estúdio uma máquina registradora que seria usada, tempos depois, na introdução de Money, do Pink Floyd. ?Quando entrevistei Paul McCartney, em 1997, ele explicou que a ?biografia oficial? dos Beatles, de Hunter Davies, de 1967, era só 60% verdadeira?, conta Spitz. ?O resto foi ocultado pelos Beatles para proteger amigos, famílias e namoradas do lado mais sombrio das histórias. Infelizmente, os Beatles repetiram essa história tanto tempo que esqueceram o que era verdadeiro e o que eles inventaram.? Em 1963, quando o Daily Mirror estampou em letras garrafais na sua primeira página a palavra Beatlemania, tudo parecia explicado. Mas ainda há muito o que dizer.