O pianista francês Alexandre Tharaud, que completou 50 anos em dezembro (dia 9), é um dos mais criativos músicos da atualidade. Quando se pensa que estamos diante de um especialista em música contemporânea (inúmeros CDs dedicados a obras de Boulez Dutilleux, Kurtag, Pécou, Maurizio Kagel), ele nos surpreende gravando os grandes românticos (Schubert, Schumann, Chopin), sem esquecer as fontes do século 18, com a maravilhosa música para teclado de Rameau e Bach. Com direito a surpresas deliciosas, como as dos CDs Barbara, de 2017, onde convoca nomes como Juliette Binoche, Renaud Capuçon e o Quarteto Modigliani (este tocou recentemente em São Paulo, com músicos da Camerata Aberta) para um tributo à cantora-compositora popular francesa Barbara (1930-1997). Também não dá pra esquecer investidas na música popular da noite francesa dos anos 1920, com Le Boeuf sur le toit (2012); e a autobiografia musical Autograph (2013), onde faz um selfie das músicas que mais gosta de tocar quando está em casa sozinho, músicas das internas: um arco que vai de Bach a Sibelius, de Couperin (Tic-Toc-Choc) a Ignacio Cervantes (Adiós a Cuba).
Pois Tharaud fará um recital nos dias 25 e 26 de junho na Temporada 2019 da Sociedade de Cultura Artística (o único outro recital da temporada da SCA é o de Nelson Freire, em novembro). O repertório não foi anunciado. Vale olhar suas gravações.
Foram várias em 2018. Ele gravou as sonatas de Brahms com o violoncelista Jean-Guihén Queyras (que já tocou várias vezes na Sala São Paulo); e acabou de lançar um CD com as três últimas sonatas de Beethoven. Sempre para a Erato/Warner. Nada garante que em junho Tharaud ainda esteja na “vibe” Beethoven.
Por enquanto, podemos ouvi-lo em Beethoven. Poucos pianistas enfrentam as sonatas opus 109, 110 e 111. Impossível esquecer as palavras de Charles Rosen sobre as 32 sonatas, num livro essencial (Beethovens piano sonatas – a short companion – Ed. Universidade de Yale, 2002). Ele diz que, depois de se estabelecerem como ponto máximo da música doméstica no século 19, estas sonatas constituíram “a ponte da música doméstica para a sala de concertos, e na condição de parte mais importante de um recital (…), como modo de o pianista profissional demonstrar suas pretensões na mais elevada cultura musical (…) elas tinham circunspecção, paixão e humor. E garantiam contato com o sublime”.
Das 32, as três que mais parecem nos dar passaporte para o sublime são estas escolhidas por Tharaud (dá para acrescentar a este trio a opus 106, Hammerklavier). Houve quem as chamasse de “frutos da solidão”, monólogos interiores.
Beethoven parece desamarrar-se de vez de qualquer regra. Combina elementos contraditórios, acolhe a fuga, o recitativo, a variação. Comecei ouvindo Tharaud na derradeira, a opus 111, tão bem comentada por Kretzschmar no capítulo oitavo de Doutor Fausto, de Thomas Mann. E fui direto para a Arietta. Ainda bem que ele entendeu corretamente a indicação de movimento – observação creio que de Andras Schiff. Não é “adagio molto, semplice”, mas “adagio, molto semplice”. Uma vírgula que muda tudo. Quantas leituras arrastadas demais pululam por aí.
Aprovado na 111, retornei à 109. Bem, na 111 o editor perguntou a Beethoven se ele não havia esquecido o rondó final (a sonata só tinha dois movimentos). Nas outras duas também havia motivos para o editor ter dúvidas. Na 109, os dois primeiros movimentos somam juntos a metade do terceiro. Aparentemente, desequilíbrios estruturais. Só aparentemente. No prestíssimo da 109, por exemplo, brilhou a perfeita articulação de Tharaud. Outra observação: nas três sonatas, os movimentos finais são ocupados por adágios na maior parte (109 e 110) ou total (111). Ele faz o adagio da 110 soar corretamente íntimo, jamais monumental.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.