Cristovão Tezza se define como “um cético, vítima de um realismo chão e mesquinho”. Mas há pelo menos 20 anos a carreira do escritor é marcada por felizes coincidências com os anos terminados em oito. Em 1988, ainda um escritor desconhecido nacionalmente, Tezza lançou Trapo e marcou a ferro quente seu nome nas letras nacionais; já no final da década seguinte, em 1998, o escritor concebeu Breve espaço entre cor e sombra, que foi considerado o melhor livro daquele ano pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro; e agora, no recém-acabado 2008, Cristovão Tezza alcançou o ápice da carreira literária com o emocionante O filho eterno, romance em que descreve sua relação com o filho Felipe, portador de síndrome de Down.
Mas, para além da irresistível tentação de dar a tais coincidências uma interpretação cabalística e transcendental, o premiado romance, que levou os cinco principais concursos literários do País em 2008 (Jabuti, Bravo!, APCA, Portugal-Telecom e o recém-criado Prêmio São Paulo de Literatura), colocou à prova a habilidade de Tezza como escritor ao discutir um tema tão pessoal quanto perigoso em termos literários.
Ao optar por uma narrativa abertamente autobiográfica (ainda que em terceira pessoa) e por um assunto que costuma ser tratado mais frequentemente em livros de auto-ajuda do que em obras de ficção, O filho eterno corria sério risco de se tornar mais um desses “livrinhos edificantes e sentimentalóides”, nas palavras do próprio Tezza. O que, por conta de um distanciamento impressionante dos episódios relatados, não acontece.
“O que me salvou, digamos assim, esperançosamente, é que o tema já não é para mim um “problema pessoal’ – é um fato autobiográfico de um pai que não existe mais, ficou lá para trás. Isto é, consegui tratar da minha biografia como a biografia de um outro (o que de fato é), e isto me deu o registro literário fundamental que eu precisava para ir adiante”, revela o escritor.
Tal isenção e distanciamento têm sido apontados pela crítica especializada como os grandes responsáveis pela força singular do livro e, consequentemente, pelo seu sucesso editorial. Para Manuel da Costa Pinto, crítico literário da Folha de São Paulo e editor do programa Entrelinhas da TV Cultura, em O filho eterno Tezza “trata de si com um distanciamento brutal, às vezes sádico (ou, no caso, masoquista), que nenhum relato autobiográfico conseguiria atingir”.
Esse livro, diz Costa Pinto, “que inicialmente estabelece com o leitor um pacto ficcional segundo o qual a matéria narrada faz parte do vivido, é um triunfo da ficção: logo deriva para uma lucidez crítica que nem cem anos de análise poderiam desrecalcar”.
Nessa linha de pensamento, pode-se dizer que O filho eterno é um diamante que vinha sendo lapidado há anos pelas mãos de Tezza. Quem acompanha a carreira do escritor, sabe que em seus romances há, sempre, indícios de sua trajetória pessoal. Livros como Trapo, cujo personagem-título é um poeta sufocado pela própria poesia e marginalidade, como o jovem Tezza que burilava seus primeiros trabalhos sob a batuta de Wilson Rio Apa em Antonina, e Ensaio da paixão (1999), em que o escritor acerta as contas com o passado ao discutir temas caros à sua geração, contam, de forma bastante explícita, parte da trajetória de Tezza.
E em O filho eterno, o caráter reflexivo da obra de Tezza se acentua de maneira ainda mais radical, porém sublime. “O que Tezza fez foi um deslocamento importante. Em vez do ‘filho eterno’, quem ocupa o primeiro plano é o pai e seu ponto de vista nada complacente sobre si mesmo. E o caráter autobiográfico não significou falta de distanciamento.
Essa estratégia, sabiamente conduzida, ajud,ou a desconstruir o clima meloso das “experiências de vida’, que normalmente são expostas com excesso de ‘nobreza’ e ‘altruísmo'”, explica Ivan Marques, professor de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo (USP).
Ao comentar as características singulares da prosa de Tezza, Costa Pinto diz que o escritor catarinense “consegue discutir questões afetivas e morais contemporâneas, sempre com ironia e com muita interrogação permanente”. O crítico da Folha vai além e diz que os dois últimos livros de Tezza (O fotógrafo e O filho eterno) o colocam lado a lado com dois grandes escritores da literatura mundial.
“Tezza constrói uma ficção crítica sobre nossas pequenas utopias (as únicas que nos restaram após o fim das grandes utopias) que só encontra paralelo na prosa de dois outros criadores de personagens problemáticos, representativos de uma classe média urbana e culta, que fazem as questões intelectuais penetrar no dia-a-dia: Coetzee (J.M. Coetzee, sul-africano ganhador do Nobel de Literatura) e Roth (Philip Roth, escritor norte-americano).”
Sucesso com o público
O sucesso d’O filho eterno com a crítica reverberou, também, no público. O livro atraiu a atenção de uma faixa mais ampla de leitores, que vai além do espectro estritamente literário. Em um país onde os livros que “dão certo” comercialmente vendem, em média, três mil exemplares, é um feito a se comemorar a marca de 20 mil livros alcançada até agora pelo livro de Tezza.
Segundo a editora Record, o romance, que vai para a sexta edição nacional, já ganhou versões na Itália e em Portugal. Em 2009, será lançado também na França, Espanha, Austrália, Nova Zelândia e Holanda. Além disso, a agenda de Tezza inchou após as premiações. Convites para publicação de textos na imprensa, participações em mesas-redondas, entrevistas diárias e palestras praticamente deixaram o escritor sem tempo para nada.
“Minha rotina de escritor acabou. O romance que comecei e do qual tenho apenas 30 páginas, parou. Quero voltar a me reorganizar neste ano, para escrever em paz”, revela o escritor. Tezza, um catarinense que fez de Curitiba parte integrante de sua obra, responde de um jeito bastante curitibano sobre o recente barulho em torno de sua obra e da tardia consagração.
“Nunca pensei objetivamente em prêmio. Passei a vida escrevendo, e de vez em quando olhava para fora da janela. Eu acho que as coisas estão acontecendo na medida certa comigo. Não sei se teria cabeça boa para responder a esse assédio aos 40 anos. Está legal assim como está.”
