Em meio aos ruídos de celas, portões de ferro batendo e paredes gastas do presídio Adriano Marrey, em Guarulhos, 24 detentos ensaiam para a peça O Alquimista, uma adaptação teatral do romance best-seller de Paulo Coelho. Todos estão cumprindo penas por tráfico de drogas ou roubo, e tentam preencher o ócio do cárcere encenando nos palcos da cadeia.
Essa foi a realidade de Leonardo Campos, ator que interpreta o personagem Lindão em Sintonia, série da Netflix lançada em agosto deste ano. O homem, de 34 anos, foi condenado por roubo de carro em 2014 e passou quatro anos preso.
O que Leonardo não esperava era que aquele lugar despertaria sua vocação para as artes. Ele começou a escrever seis livros, letras de música – do gospel ao funk – e aprendeu a tocar violão, até que descobriu as oficinas de teatro – oferecidas a um seleto grupo de presos dentro da unidade desde 2010.
“As aulas me deram mais sabedoria, maturidade e foco, porque a cadeia é um mundo sem luz que não te dá direção”, diz o ator, que ganhou a liberdade condicional em agosto do ano passado. “Eu podia ser eu sem me preocupar em ser criticado por colocar o melhor de mim para fora. Na cela, você tem que ficar mais reservado, não sorrir para ninguém, porque é um ambiente só de ódio, tristeza e abandono. Teatro é a vida lá dentro e salvou a minha.”
Apesar da iniciativa de ressocialização, o local sofre com problemas de infraestrutura. Ele foi planejado para receber 1.268 detentos, mas abriga 2,2 mil – quase o dobro do previsto, segundo a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) de São Paulo. Desses, apenas 24 (1%) fazem as atividades atualmente, após passar por um processo seletivo anual que ocorre desde o lançamento do projeto.
O fundador da iniciativa e instrutor teatral Igor Rocha, de 60 anos, foi quem indicou Leonardo para atuar em Sintonia. Agente carcerário há duas décadas, ele sonha em ver a ação se transformando em política pública. “As oficinas são um meio de oxigenar o local e ter o mínimo de conflito possível. É melhor trabalhar alternativas para melhorar o cárcere do que pisoteá-lo”, acredita. O desejo pela ampliação do programa não vem à toa: de acordo com a SAP, apenas 11 dos cerca de 280 egressos que passaram pela oficina voltaram para o crime.
Perspectiva
Christian Martins, de 39 anos, interpreta o protagonista Santiago, de O Alquimista, e participou de O Auto da Compadecida com Leonardo Campos, em 2018. Ele está preso há três anos, é pai de duas crianças e se deslumbrou com o dinheiro fácil do tráfico de drogas. Após passar cerca de um mês de “castigo” no presídio de Presidente Venceslau, que abriga membros do Primeiro Comando da Capital (PCC), ele alega que não tem esperanças com o sistema penitenciário, mas encontrou oportunidades no Adriano Marrey.
“O sistema prisional é falido e a cadeia não recupera ninguém. Mas aqui identifiquei pessoas, e pessoas recuperam pessoas”, destaca ele, que foi um dos responsáveis por fazer a adaptação teatral de O Alquimista. “Percebi que tinha colegas aqui capacitados para lidar com textos. A gente chega na prisão sem nenhuma perspectiva, mas aqui teve essa diferença”, elogia.
Controle social
O psiquiatra Rodrigo Ramos, que é especialista em psicodrama – técnica terapêutica de encenação usada para explorar vínculos emocionais -, explica que esses bons sentimentos gerados na oficina de teatro são fruto da liberação de serotonina e dopamina no corpo, substâncias cerebrais que funcionam como antidepressivos e são capazes de emocionar. Ele aponta ainda que a iniciativa pode ser uma forma de controle social.
“As cadeias são recheadas de sentimentos ruins. Alguns exercícios do psicodrama podem trazer a descarga dessas emoções e, assim, colocar o indivíduo em novos caminhos”, diz. Isso porque, para Ramos, as artes cênicas permitem ao preso simular situações envolvendo uma pessoa sobre a qual guarda mágoas ou arrependimento. “Ele pode se imaginar falando algo para a mãe que agia com descaso, o diretor do presídio ou para a sua vítima, e se sentir quase tão aliviado como se estivesse se expressado pessoalmente”, exemplifica.
Percalços
Hoje sem ser vigiado por agentes do Estado, Leonardo Campos expõe um outro lado do projeto teatral. Ele afirma que o combinado com os detentos era ter aula todos os dias, mas, sob alegações burocráticas – como ocorrências do Grupo de Intervenção Rápida (GIR), a ‘polícia’ dos presídios -, as atividades se restringem a cerca de três ou dois dias por semana. Além disso, o ator conta que os funcionários da unidade interrompiam a distribuição de água nos pavilhões, e os presos passavam horas com sede e sem banho, prejudicando o bem-estar dos alunos.
Em outros momentos, Leonardo recorda que já foi para a oficina com fome. “Lembro de uma vez que atrasaram a comida e ensaiamos sem comer. Voltamos e ainda não tinha chegado”, lamenta.
Hoje em liberdade condicional, o Lindão de Sintonia pretende fazer faculdade e não descarta a possibilidade de visitar a penitenciária Adriano Marrey para incentivar os presos a mudarem de vida.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.