Entre os revolucionários russos de outubro de 1917, havia todos os tipos de homens e mulheres. Poetas, músicos, filósofos, professores, intelectuais, soldados, operários e camponeses. E uma vanguarda bolchevique formada por revolucionários profissionais, que além de coragem, tinha também conhecimento teórico e uma dura prática.
Vladimir Ilitch Lênin poderia ter sido grande professor universitário: tinha conhecimento de filosofia e economia. E sobre o último assunto escreveu um tratado. Ele incumbiu-se da criação do estado operário, com todas as dificuldades decorrentes do desafio. Leon Trotski era brilhante intelectual, bom escritor e a sua tarefa no alvorecer da União Soviética foi a de organizar o exército vermelho a partir do zero, usando oficiais do antigo regime que resolveram colaborar, mas que não decidiam sem a presença de um comissário político. Com este corpo militar bicéfalo, Trotski enfrentou a guerra civil e revoltas nos quatro cantos do enorme território russo.
Havia ainda revolucionários como Bukharin, Kamenev, Zinoviev e outros, que eram sofisticados. E havia um sujeito tosco chamado Ióssif Vissariónovitch Djugashvili. Também conhecido por Stalin. Quando Lênin morreu, acreditava-se que o poder seria transferido a alguém com um mínimo de sofisticação. Talvez, Trotski. Mas o poder caiu nas mãos de Stalin. O mais tosco de todos os revolucionários russos. Mas, talvez, o mais astuto.
Por que e como isso aconteceu? ?Estive entre aqueles a quem Stalin havia cruelmente derrotado; e uma das questões que devia propor a mim mesmo era por que ele fora bem sucedido?, diz Isaac Deutscher na introdução de seu livro Stalin – uma biografia política (Civilização Brasileira, tradução de Luis Sérgio Henriques, 607 págs., Rio de Janeiro, 2006). Ele propõe responder a esta questão. E responde.
Para quem não sabe, Isaac Deutscher foi um judeu polonês nascido em Cracóvia, em 1907, e morto em Roma, 1967. Ele foi um dos mais brilhantes trotskistas, autor de antológica biografia de Trotski (O Profeta Armado, O Profeta Desarmado e O Profeta Banido), entre outros livros. Para qualquer trotskista, escrever sobre Stalin é algo semelhante a um cristão discorrer sobre o demônio sem se irritar. É impossível evitar caricaturas, ironias e agressões.
O próprio Trotski ao fazer uma biografia de Stalin não resistiu em evidenciar que o oponente fora ladrão de galinhas. Mas Deutscher não sucumbiu ao jogo baixo. Para entender Stalin, diz ele, ?o combatente de partido devia se tornar um historiador, examinar desapaixonadamente causas e efeitos, analisar serenamente as razões do adversário, ver e admitir a força do adversário quando fosse o caso?. E foi assim que se atirou na tarefa de desvendar Josef Stalin.
O resultado é uma radiografia do homem que pessoalmente ou não dominou a Rússia e uma boa parte do mundo, no século 20. Seja através de ordens ou do medo que inspirou. Seja através de lacaios, a quem tornou fortes e forjou como herdeiros, que sobreviveram fortes pouco tempo depois de sua morte, mas ainda regurgitam pelos quatro cantos do planeta.
Deutscher faz um trabalho de médico legista sobre Stalin e sua obra. Não há ação de Stalin, da infância à sua morte, incluindo a passagem pelo seminário, ingresso no partido, que não esteja presente no livro. A astúcia de ficar nas sombras, controlar a burocracia do partido, ponto estratégico na sucessão de Lênin. E controlar o poder na hora certa. Os jogos urdidos com um e outro grupo, tornando-os fracos enquanto ele sempre se fortalecia.
A sua truculência, os expurgos, o domínio sobre a vida da Rússia. A perseguição aos dissidentes, criação de campos de prisioneiros, execuções misteriosas. O interior do poder, a resistência de generais nos anos 30s e as conseqüentes execuções de quem ousava atravessar o seu caminho.
Sob Stalin, a Rússia fez um percurso ambíguo: conheceu o horror e a industrialização. A obsessão por safras para evitar a fome e os planos qüinqüenais que redundavam em fracassos. A cultura se transformou em apologia ao sistema e no culto à personalidade do líder. No plano externo, o equívoco do pacto de não – agressão com Adolf Hitler, na ânsia de proteger o território soviético. Com a guerra, a mobilização para enfrentar os alemães. Uma resistência, ironicamente bem sucedida, graças à industrialização maciça, que transferiu milhares de camponeses para a cidade, com grande custo humano. A ausência de liberdade e os milhões de mortos. O livro não é uma biografia no sentido clássico, mas uma biografia política. É a anatomia de uma tirania.
Por isso, o livro de Deutscher é leitura obrigatória a quem deseja conhecer um pedaço crucial do século 20. Ao terminar, não se tem apenas a compreensão das vilezas de um tirano. Mas também a sua grandeza. Como a resistência ao nazismo, com milhões de mortos, mas sem a qual Hitler certamente não teria sido derrotado.
E Stalin ascende não como um tirano caricato, mas como um líder astuto que emergiu no meio de uma revolução para ser um sucessor de Lênin. E, na história da Rússia, um autêntico sucessor de Ivan, o Terrível.
A primeira edição do livro, dos anos 60s, também da Editora Civilização Brasileira, veio em dois volumes. A atual em um único volume. É um catatau. Que vale cada página impressa. A melhor maneira de evitar novos tiranos é conhecer a sua anatomia.
Edilson Pereira é editor de Política em O Estado.