No panorama diverso da música clássica e da ópera brasileiras, há algumas figuras que, com seu trabalho e generosidade, são capazes de ultrapassar barreiras e se transformar em referência incontornável para gerações de artistas das mais diferentes orientações. Foi este o caso da soprano Martha Herr, que morreu no sábado, 31, aos 63 anos, em São Paulo, após uma longa luta contra um câncer. Associada particularmente à criação contemporânea, ela não aceitou limites. E sua carreira, como professora, pesquisadora e intérprete, foi, acima de tudo, um tributo às possibilidades expressivas de seu instrumento, a voz, e à atividade pedagógica.
Martha Herr nasceu nos Estados Unidos, onde estudou na State University of New York e na Michigan State University. Após mudar-se para o Brasil, tornou-se professora do Instituto de Artes da Unesp. Aposentou-se em 2013 e, desde então, atuava como professora voluntária na pós-graduação da instituição, dirigindo também o grupo de pesquisa Expressão Vocal na Performance Musical. Sua atividade docente não se limitou, porém, à universidade. Além de orientar alunos, ela desenvolveu trabalho importante com a música coral, trabalhando no aperfeiçoamento de grupos como o Coral do Amazonas ou o Coral Lírico do Teatro Municipal de São Paulo.
No palco, Martha Herr realizou a estreia de mais de cem obras, incluindo na lista diversas peças de autores brasileiros, além de compositores como o norte-americano John Cage. No mundo da ópera, além de participar de montagens de autores barrocos, como Purcell, e da primeira produção brasileira do Anel do Nibelungo, de Richard Wagner, em Manaus (onde interpretou também uma inesquecível versão do Pierrot Lunaire, de Schoenberg), participou da estreia mundial de cinco obras. O destaque foi a elogiada criação do papel de Olga Benário, na Olga de Jorge Antunes, estreada em 2006 no Teatro Municipal de São Paulo e depois apresentada em Brasília.
Vídeo: Martha Herr interpreta o “Pierrot Lunaire”, de Schoenberg, em Recife .
Na mesma temporada, foi solista, no mesmo palco, da Missa em Dó Menor, de Mozart, atestando a diversidade de seu repertório. Em 2008, comemorando 30 anos de carreira, interpretou as Iluminações de Britten e as Folk Songs of the Four Seasons, de Vaughan Williams, sob regência do maestro Gil Jardim. Na lista de apresentações dos últimos tempos, merece destaque também um recital do lado do pianista Gilberto Tinetti, no qual ofereceu leituras memoráveis de canções de Schumann. Sua trajetória nos palcos lhe rendeu o Prêmio Carlos Gomes de Destaque Vocal (1998) e o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte de Melhor Cantora (1990).
O trabalho com a música brasileira foi um dos pilares de sua atuação, do repertório colonial à produção atual. E não apenas no palco: em 2007, ela publicou na Revista Opus (e, em 2008, no Journal of Singing) as Normas para a Pronúncia do Português Brasileiro no Canto Erudito, resultado de anos de pesquisa e atividade musical com o repertório nacional. Da mesma forma, seu texto O Canto Que Não É Canto, A Palavra que Não é Palavra, publicado em Arte e Cultura: Estudos Interdisciplinares II (organização de Maria de Lourdes Sekeff e Edson Zampronha), segue como referência na bibliografia em português sobre a relação entre texto e música no século 20.
Na noite de sábado, a récita da ópera A Menina das Nuvens, de Heitor Villa-Lobos, foi dedicada pelo elenco e o Teatro Municipal do Rio de Janeiro à memória de Martha Herr. Em comunicado nas redes sociais, sua família informou que não será realizado um velório, convidando seus amigos para uma “celebração pela vida dela” nesta segunda-feira, dia 2 de novembro, na casa da artista, a partir das 10 horas.