Gloriosa! Sonia Braga veio à serra gaúcha para receber a homenagem do 44.º Festival do Cinema Brasileiro e Latino. Na sexta, 26, ela recebeu o Troféu Oscarito, pela primeira vez entregue a uma mulher. Na sequência, passou, como filme de abertura, Aquarius, de Kleber Mendonça Filho. No seu discurso de aceitação, que não houve – o protocolo foi atropelado talvez por atraso -, ela gostaria de ter dito que o filme de Kleber chegou para ela como uma mensagem numa garrafa. “Como mulher, artista e cidadã, estava num momento em que queria dizer coisas, em que precisava dizer, e o filme de Kleber me deu as palavras”, ela disse ao repórter.
Sonia, de 66 anos – repetidas vezes esclareceu que é de 1950 -, está mais bela que em Cannes, quando houve seu encontro anterior com o repórter, na apresentação de Aquarius no maior festival do mundo. Qual é o mistério que faz com que essa mulher, a despeito de rugas inevitáveis – e que não esconde -, esteja tão esplendorosa? “E não é?”, ela concorda. Mas não sabe explicar. Só sente. O repórter lhe conta – gostou tanto de Gabriela, o musical que João Falcão adaptou do livro de Jorge Amado, que sentiu necessidade, mais que vontade, de voltar ao romance famosa. E o leu no avião para Porto Alegre, na van para Gramado. E aí, de repente, eis que a própria e definitiva Gabriela está diante dele.
Quando o amado Jorge descreve a volta de Nacib para casa, como ele contratou a retirante coberta de sujeira, há algo de mágico na descrição do escritor. Gabriela banhou-se. Os cabelos grudentos avolumaram-se, e pela posição em que ela dorme o vestido revela a coxa que entontece o árabe. Amado descreve Gabriela, mas já era Sonia. A atriz colou à personagem. Sonia, faça uma viagem no tempo, como foi seu encontro com Jorge, ainda no tempo da novela? “Lembro direitinho. Houve uma coletiva na varanda da casa dele. Jorge eu juntinhos, colados na rede. A primeira pergunta dos jornalistas – ‘Porque você quis Sonia para ser Gabriela?’ E Jorge – ‘Porque ela é minha amante.’ E ele riu, um riso gostoso.” O repórter aproveita a deixa de uma coisa que Sonia disse na coletiva de Aquarius, falando de José Wilker, o inesquecível Vadinho. Jorge Amado, Wilker, este ano morreu Hector Babenco, que a dirigiu em O Beijo da Mulher Aranha. Como é a relação de Sonia com seus mortos? Ela é nostálgica? Tem saudade dos que se foram?
“Não, porque os carrego comigo e, de certa forma, permanecem vivos. Minha mãe, por exemplo. Foi a costureira que fez os vestidos da Mulher-Aranha. Então, com sua criação no filme, ela estará sempre viva.” E os olhos de Sonia brilham. Duas vezes indicada para o Globo de Ouro nos EUA, duas vezes vencedora do Kikito de Gramado – melhor atriz, por Eu Te Amo, de Arnaldo Jabor, em 1981, melhor coadjuvante, por Memórias, de André Klotzel, em 2001 -, Troféu Oscarito em 2016, é muito estranho ver Sonia dizer que não é atriz. “Não cursei academia, não tive formação clássica.
Sou uma pessoa que depende do diretor, e o Kleber é ótimo.” Cheio de dedos, o diretor lhe disse, ao formular o convite, que queria formar seu elenco com profissionais e não profissionais, e ela teria de contracenar com os segundos. “Ótimo, porque também não sou atriz.” Sonia conta rindo. Quando Sonia Braga está na telas, ninguém desgruda o olho. Na sala da coletiva, no canto em que conversa com o repórter. É magnética.
No tapete vermelho, então… Gramado montou este ano telas móveis no palco do Palácio dos Festivais. Pelo telão, os espectadores dentro da sala seguiram sua longa caminhada pelo tapete vermelho. Os demais telões exibiam imagens de seus filmes emblemáticos – Dona Flor e Seus Dois Maridos e Gabriela, duas personagens ‘amadianas’, de Bruno Barreto; Tieta do Agreste, uma terceira heroína de Jorge Amado, de Cacá Diegues; A Dama do Lotação, de Neville D’Almeida; Eu Te Amo, Memórias etc. Num depoimento gravado, Cacá diz que a câmera ama Sonia Braga. E nós, seu público, a vemos mover-se, hipnotizados. O cabelo em trança, o vestido que modela o corpo, modelito by… Sonia Braga. Poderosa, serena. Nem parece que a semana havia sido tão febril, como definiu Kleber Mendonça. Desde o protesto da equipe do filme em Cannes, denunciando o ‘golpe’, Aquarius tem estado no centro de uma polêmica. A impropriedade do filme até 18 anos, decretada pelo Ministério da Justiça, gerou réplica e tréplica. Seria (é?) represália? Sonia ironizou. “Deve ser porque tem tubarão, para proteger criança na praia.” O ministro da Cultura, Marcelo Calero, e o secretário do Audiovisual, Alfredo Bertini, estavam no público que viu Aquarius em Gramado. O ministro foi chamado, aos gritos, de ‘pelego’. A temperatura recrudesceu. Não basta mais gritar “Fora, Temer!”. Alguém radicalizou – “Morra, Temer!”
O Brasil está dividido. “Em Cannes usamos nosso direito de cidadãos de manifestar inconformidade”, resume Sonia. Desde o início, a equipe estava decidida a fazer alguma coisa. “Não sabíamos exatamente como faríamos (o ato), mas cada um vinha com seu sentimento individual. Foi um ato de democracia”, Sonia disse na coletiva. Para diretor, nem foi um ato, mas um gesto. As reações foram viscerais, a favor e contra. Aquarius, que estreia na quinta, 1º, é sobre o amor de uma mulher por sua cidade – Recife -, sua família. É um filme político – Clara, a protagonista, enfrenta o poder econômico -, mas a política é meio invisível, subordinada ao humano.. Ninguém está recuando. “Sonia chegou a dizer que nunca é demais repetir que é golpe. “Criar esse precedente foi um crime.”
Sem glamour
E ela admite não entender porque, ao contrário do esporte, tanta gente seja renitente em reconhecer que artistas também representam o País. “Eu estou sempre representando o Brasil, não apenas no tapete vermelho de Cannes. Amo meu País e quero o melhor para todos nós.” O que ela não entende – aceita? – é essa necessidade de vincular o artista ao glamour. Interpretar é ofício, como disse Tony Ramos, homenageado no sábado, 27, com o Troféu Cidade de Gramado. A própria homenagem a Sonia na abertura do festival fugiu um pouco ao protocolo porque, em geral, o Troféu é entregue mais tarde, com o festival andando. Não faria sentido apresentar Aquarius na abertura e homenagear Sonia na terça ou quarta, como de hábito. Nem seria possível. “Estou voltando a Nova York porque na sexta, dia 2, tenho um dia de filmagem na nova produção de John Turturro, Going Places.”
Logo em seguida ela emenda com outro dia de filmagem, e dessa vez numa produção com Sonia Braga, Wonder. “Acho que nem vou cruzar com ela no set. Faço a mãe de Julia, que está tendo problemas com a filha e minha cena é com a garotas, que busca amparo na avó.” Pequeno, grande, não importa o papel. O importante é o prazer de fazer. “Não vejo esse ofício como uma coisa angustiante, mas prazerosa. Sou do tipo que faz tudo no set. Gosto da vibração, do entusiasmo, das pessoas. Por isso mesmo acho que vou ter dificuldade para me distanciar da equipe de Aquarius, porque foi um dos sets mais felizes e integrados que frequentei.” Maeve Jinkinks, que faz a filha de Clara/Sonia no filme, deu um depoimento dizendo que Sonia não tem nada de estrela. “Ela se desmistifica para ficar mais próxima da gente”, disse Maeve. O repórter de novo aproveita a deixa. Sonia virou mito sexual no imaginário do homem brasileiro. Objeto de desejo de toda uma geração – de gerações. Alguma vez o mito inibiu os homens em que ela esteve interessada? Sonia teve de desmistificar-se? “Como assim?”, ela indaga. A pergunta que não quer calar – alguém falhou com Sonia Braga na cama? “Ah isso. Com quem chegou na cama, nunca. Mas você vê, eu converso muito. Sou boa de descontrair.” Receita de Sonia.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.