Sonata patética para um anão chamado Hércules

Cara de palhaço, pinta de palhaço, roupa de palhaço. Como no samba, ele tinha tudo isso. E tinha mais do que isso: um corpo mirrado de anão. Pobre, triste anão. De longe, parecia um menino. De perto, porém, notava-se a anomalia física. O rosto, que parecia esculpido em cedro ou granito, mostrava todas as rugas de auto-retrato de Rembrandt, na velhice. E nos olhos cor de cinza, que por vezes se tornavam de aço, soluça a tristeza de Van Gogh fitando os corvos negrejantes esvoaçando sobre os campos de trigo à margem do Oise, tangenciando Auvers. Contradição viva, a distância, da cabeça aos pés, chegava a um metro e trinta, se tanto. Paradoxo de carne e osso, assimétrico, não havia correspondência entre o espaço físico ocupado pelo corpo e a idade indefinível – quarenta, cinqüenta, sessenta anos? Tinha algo de neto com a idade de avô.

O circo era o território onde o seu quotidiano se arrastava, o templo onde oficiava a sua liturgia, a pátria das suas aflições e do seu desencontro perpétuo. Lá se desenrolava o itinerário das suas angústias e o naufrágio dos seus sonhos. Era uma espécie de purgatório privativo onde chegava, às vezes, um pouco da luz celestial. Sim, todas as noites havia um momento de eleição em que uma espécie de luz viva vinha até ele: era quando Cynthiah, a jovem trapezista loura, pássaro de volúpia e mel, alçava o seu vôo nas alturas. A partir desse instante, os olhos do anão palhaço, que já havia realizado o seu número com um colega ligeiramente mais baixo, ficavam irresistivelmente presos no trapézio. Este ia traçando a sua órbita, em largas elipses ou parábolas, cavalo alado levando no dorso a sua deusa, espécie de meteoro dourado brilhando a luz crua dos holofotes. Ele, o pobre e triste anão, era uma espécie de satélite petrificado pelo assombro e o êxtase, e até mesmo o surdo medo, quando a trapezista realizava seus saltos mortais. Imortalmente mortais. Fitando o trapézio, o anão sonhava. De olhos muito abertos sonhava. De que é feita a matéria dos sonhos? De tudo e de nada. De resíduos imponderáveis de luz e fragmentos minúsculos de sombras e restos de música das esferas e farrapos de esperanças e desejos e dor e ascensões e abismos. De fel e mel. De repente, porém, o sonho terminava. A deusa cujos cabelos eram uma cascata de ouro escorrendo sobre espáduas brancas, descia do céu à terra, agradecia os aplausos entusiásticos do público, numa coreografia de gestos medidos, e voltava aos bastidores. Passava por ele sem sequer olhá-lo, como se ele fosse um objeto inerte, um simulacro, uma coisa impessoal menos importante do que as feras das jaulas. A raiva, então, crescia dentro dele como a lava ígnea de um vulcão. Raiva contra o mundo. Raiva contra tudo e contra todos. Sobretudo, raiva contra si próprio, um anão, feio insignificante, para quem todas as alegrias do mundo estavam proibidas pelo decreto de uma potência obscura. O que era ele, afinal? Uma figura grotesca, passeando no mundo a sua tristeza sem fim e sem remédio. E o anão rangia os dentes e mordia os lábios até sangrar, as mãos crispadas pelo desespero inominável. A solução era só uma: fugir, evadir-se. Imaginava-se subindo às torres mais altas, aos himalaias, ficando lá para sempre a fitar a humanidade que se acotovelava nas planícies – ó infinitas legiões de formigas em trânsito irremediável para o nada! Voltava à realidade sentido-se melhor. Pronto para enfrentar de novo aquele momento eleito em que sua deusa voltava ao pedestal, o trapézio. Ei-la subindo de novo a escada de corda, rumo ao Olimpo, frágil e bela, ex-libris da beleza implacável. Embora longínqua, inacessível, ei-la uma vez mais desenhando seus movimentos graciosos, desafiando com um sorriso nos lábios o mistério da morte. Como sempre, o anão voltava a sonhar o seu sonho. Um sonho em que ele e ela eram apenas um só, fundidos no trapézio. A sua boca abriu-se de leve, entre o sorriso e o esgar, para beber um gole efêmero de uma alegria breve, fugidia. Preocupado com a expressão do companheiro, o outro anão, que conhecia bem a grandeza da paixão que florescia ao lado, falou, tentando trazê-lo à realidade:

– Acorda, Hércules!

A princípio, não ouviu o chamado. Só da segunda vez se deu conta da voz aflautada do outro. Ao fitar o companheiro, como se viesse de longe, viu-se no espelho. Estava de novo na terra dos homens, agredido pela afronta inaudita do próprio nome, Hércules. Uma figura mitológica de mentira, um herói de fancaria, mais boneco e fantoche e títere do que gente, para quem jamais haveria animais fabulosos a destruir e deusas de mármore a conquistar. Ali havia apenas um anão perdido na infinita solidão do mundo, ilha solitária de um arquipélago desconhecido. E o anão chorou, enquanto uma ovação se erguia no tempo e no espaço, cantando a graça, a beleza, o esplendor, a coragem da trapezista no seu trapézio fantástico. E o som das palmas e dos gritos em louvor da deusa parecia fazer contraponto às lágrimas silenciosas de um Hércules inconsolável, irremediavelmente exilado da sua pátria, o distante país de Liliput…

João Manuel Simões

é escritor, membro da Academia Paranaense de Letras.

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