Cada homem, na sua infinita singularidade, é a humanidade inteira. Com palavras diferentes, Terêncio afirmou isso mesmo. Há um pouco de exagero na afirmação? Talvez haja. (Aqui, se justifica o talvez dubitativo de Descartes e Montaigne.) Eu diria, antes, que cada homem não é apenas um homem, mas vários.
A unidade humana existe apenas no plano físico, no terreno fisiológico, na arquitetura por assim dizer material. Em termos psicológicos e espirituais, essa unidade desmorona, soçobra. Na verdade, cada ser humano traz dentro de si diversos ?outros?. Que dialogam, discutem. Que se contradizem, por vezes. Que se digladiam, até.
Por isso mesmo, o suicídio é sempre o desfecho de um combate singular em que um acaba por matar o ?outro?, dentro do mesmo território físico. Um exemplo? Mário de Sá-Carneiro. O grande poeta luso, talvez o maior rival de Fernando Pessoa (em termos, é claro, pois há ?outros? êmulos), em princípio não aceitou a dicotomia. Pelo menos teoricamente. O seu verbo poético procurou demonstrar a eqüidistância ? vale dizer, a neutralidade ? entre os seus dois ?côtés?: ?Eu não sou eu nem o Outro./ Sou qualquer coisa de intermédio, / pilar da ponte do tédio / que vai de mim para o Outro? . Na prática, porém, o poeta da ?Dispersão? e de ?Indícios de ouro? acabou por submeter-se ao império da regra geral. E um acabou por liquidar o outro. O suicídio (e talvez fosse melhor falar em autocídio) enterrou a teoria poética.
?Nenhum homem é uma ilha?, proclama o metafísico escocês John Donne. ?No man is an island?, dizem suas palavras emblemáticas, no original. Sim, cada homem é uma sucessão de ilhas, integrantes de um arquipélago. Feito de estilhaços de um continente primordial que acabou por fragmentar-se. Só na aparência ele é unitário. Na verdade, é múltiplo, plural. Por outro lado, cada homem é o esconderijo de outros. O eu não chega a ser um monolito. É antes um ?moto continuo?. Um ?moto perpetuo?. Vive sob o signo da mudança. Da transformação. Da metamorfose. É uma seqüência, um cortejo, uma ?procissão de eus?.
No seu livro interessantíssimo que leva justamente esse título, o nosso saudoso Milton Carneiro documentou, fotografou, radiografou essa multidão de seres que habitam o cerne do eu. Um eu dividido? Diria antes: um eu multiplicado ?ad infinitum?. Não há limites para essa multiplicação ontológica interior. A consciência humana, ?sanctum sanctorum?, tabernáculo do eu, é também um enorme caldeirão fervente. Cada eu é uma bolha aflorando à superfície. Para logo desaparecer, substituída por outra.
Por isso, Rimbaud escrevia: ?Je est un autre?. Não dizia ? eu sou, mas eu é um outro. Parecendo cometer um crasso erro gramatical, estava no entanto profundamente certo. A estranheza, a perplexidade, o distanciamento, estão patentes na intencional (e sutil) modificação verbal. E se ?eu é outro?, não há dúvida que todos os outros são eu mesmo.
Ezra Pound, Fernando Pessoa, Yeats, Ernani Reichmann (e antes deles Hoelderlin e Kierkegaard) souberam dar forma literária a essa realidade multímoda. Isso através das máscaras, dos disfarces, das ?personae?, dos heterônimos, toda a parafernália críptica (e às vezes crítica) através da qual o mistério da ?alteridade? se consubstancia e cumpre. Flaubert assume idêntica postura estratégica ao proclamar: ?Madame Bovary c?est moi?. Ele mesmo é ? confessa sem falso pudor ? a trágica Emma do seu romance de gênio. E a afirmação é válida para uma infinita legião de personagens da ficção universal, cuja citação exigiria páginas.
Entretanto, o paradigma, o arquétipo desse fenômeno de ?cissiparidade espiritual?, típico dos grandes criadores romanescos, é sem dúvida Cervantes. Genuíno precursor dessa problemática, naquele que é provavelmente o primeiro romance ocidental. O primeiro e talvez o maior. Refiro-me ao Dom Quixote de la Mancha. Nesse romance, o gênio espanhol se subdivide nos seus dois personagens: Dom Quixote, montado no seu Rocinante, e Sancho Pança, escarranchado no seu burro. Um, a encarnação do idealismo ?à outrance?; o outro, a personificação do realismo refratário a qualquer espécie de transcendência, imune a todos os sortilégios e prodígios encantatórios do onírico ou do fantástico.
Temos aí as duas faces nítidas, tangíveis ? a cara e a coroa ? da mesma moeda existencial cervantina. Feita de ouro puro.
Sim, Cervantes demonstra como ninguém a dicotomia, a ambivalência da vida humana (para não falar em multivalência). E exemplificou-as projetando-as do seu próprio eu nas páginas do Quixote, distribuindo-as generosamente pelo esquelético cavaleiro da Triste Figura, e pelo fiel, obeso, escudeiral Sancho Pança.
Os dois personagens arquetípicos peregrinam pelas planuras intérminas da Mancha, perdidos em diálogos e discussões que até hoje encantam a humanidade leitora. Ora, a Mancha nada mais é do que um símile do mundo. E é nesse cenário amplo que o homem desempenha a sua tragicomédia existencial que vai do berço ao túmulo. Sempre uno e múltiplo, singular e plural. Oficiando sempre a liturgia da ?alteridade?. Mesmo quando cinge contra os rins o cilício de uma ilusória e precária unidade, que só nos dois extremos do périplo existencial deixam de ser uma falácia mistificadora.
