Sobre a Inglaterra, a ciência (ou arte) culinária e um artigo de Oscar Wilde

Confesso que uma das experiências mais fascinantes da minha vida foi ter conhecido “in loco”, nos idos de oitenta, a Inglaterra e outros países europeus. Para chegar à mesma conclusão de dois grandes poetas nossos, românticos do final do século dezenove, romanticamente certos de que não há país mais belo que o Brasil. Não há mesmo.

Não obstante, amparado no famoso “de gustibus et coloribus…” admito que foi a Inglaterra o país que mais me encantou, no périplo inesquecível. A começar pela antiga Londinium romena, a Londres hierática, solene, grandiosa, que até hoje mantém o ar imperial.

A verdade é que eu já estava predisposto a gostar da Inglaterra. Isso graças à propaganda subliminar irresistível a que fui durante muitos anos submetido, por uma plêiade de escritores que fazem da sua literatura a única a disputar à da França a primazia. A disputar e a ganhar, talvez. Seja-me permitido, com esse talvez, o exercício da dúvida metódica que o imenso Descartes preconiza.

Lembro alguns dos nomes emblemáticos que me fizeram amar a Inglaterra, mesmo sem conhecê-la: Spenser e Marlowe, Shakespeare e Milton, Swift e Defoe, Sterne e Dickens, Jane Austen e Byron, Keats e Tenyson, Hardy e Henry James, Chesterton e Yeats, Wilde e Shaw, Conrad e Maugham, Virginia Woolf e Katherine Mainsfield, T.S. Eliot e Auden, Forster e Graham Greene, Durrel e Golding “an so on”.

Ocorre-me adicionar a essas influências marcantes, um livro de Ramalho Ortigão intitulado John Bull, que li e reli há mais de quatro décadas. Lá talvez se encontre a explicação, racional e emocional, para a minha transparente anglofilia. Preciso revistá-lo.

Seja como for, não desmereço, não minimizo, não subestimo as belezas e os encantos mil da Espanha e da Itália, da França e da Alemanha, da Bélgica e da Suíça, da Holanda e da Áustria, terras por onde peregrinei “in ilo tempore”. Sem esquecer, é claro, o reencontro com o pequenino Brasil europeu “à beira-mar plantado” que me foi berço, como diria o poeta.

Entretanto, tenho que admitir – “noblesse oblige” – que foi no país dos Beatles que eu me alimentei, não digo pior, mas menos bem. Desconfiei, na altura, de um preconceito injusto contra a culinária inglesa. Ledo engano. Constatei depois que a minha impressão não era única, nem sequer minoritária.

Agora mesmo vem em meu socorro alguém que se chama Oscar Wilde. Num artigo antigo, mas precioso, o mestre de O retrato de Dorian Grey, A importância de ser prudente e De profundis, justifica amplamente a tese desfavorável à culinária britânica.

Comecemos pelo fragmento seguinte: “A real dificuldade que temos que enfrentar na Inglaterra não é tanto a ciência culinária, mas a estupidez das cozinheiras. Sua completa ignorância sobre ervas, sua total inabilidade para fazer uma sopa que seja algo mais do que combinação de pimenta e molho de carne, seu hábito inveterado – não invertebrado – de cobrir faisões com um simulacro de cataplasma de pão – todos esses pecados são desmascarados pelo autor”. Ele se refere ao autor do livro de culinária objeto da sua resenha, Dinners e dishes (Jantares e pratos).

E o célebre dândi de orquídea exuberante na lapela, longos cabelos louros caindo sobre os ombros, roupa espalhafatosa e expressão “blasée”, continua, ferino: “O livro é breve e conciso, e não há muito espaço para a eloqüência, o que é extremamente agradável. Ele ainda tem a vantagem de não ser ilustrado. O tema de uma obra de arte nada tem a ver com a beleza, é claro, mas é sempre algo deprimente ver a litografia colorida de uma perna de cordeiro”.

Com ironia, irreverência e sarcasmo contundentes, tipicamente wildeanos, vai em frente: “A cozinheira inglesa é uma tola que deveria ser transformada numa pilastra de sal. Um sal, inclusive, que ela nunca sabe ao certo como usar”. E o grande escritor, adepto da “arte pela arte”, conclui assim a sua catilinária de gastrônomo “connaisseur”: “Há vinte maneiras de se cozinhar uma batata e 365 modos de se fazer um ovo, mas a cozinheira inglesa sabe apenas três formas de preparar um e a outra”. Cáspite!

O texto foi publicado em 7 de março de 1885, na famosa PalL Mall Gazette. Aquela mesma que, mais ou menos na mesma época, suscitou a Eça de Queirós alguns comentários hilariantes, quase wildeanos.

Curiosamente, Eça e Wilde morreram no mesmo ano, no crepúsculo, quase noite, do século dezenove: em 1900. Eça, nascido em 1845; Wilde, em 1854. Temos aí uma coincidência interessante. Mas que dizer das afinidades estéticas (e existenciais) entre Oscar Wilde e o autor da famosa Correspondência, Fradique Mendes? Este, na opinião de Gaspar Simões (que não é parente), “veste o mesmo figurino” de Wilde.

Pergunto, perplexo: teria o “pobre homem da Póvoa do Varzim” conhecido, de vista ou de leitura, o excêntrico autor inglês? Não possuo dados para responder a essa indagação. Não posso, porém, esconder, a nítida impressão de que o mestre do dandismo, do diletantismo e do esteticismo, pode ter sido o modelo do também dândi, diletante e esteta exemplar que se chama Fradique Mendes, o poeta excelso das Lapidárias. Foi não foi? “Chi lo sa?”

João Manuel Simões

é da Academia Paranaense de Letras.

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