Não se engane com o olhar correto do sujeito – na história desse homem bem vestido socialmente, há um músico punk que, na juventude, criou o Medusa, em 1979, grupo de artistas que adorava Kraftwerk e David Bowie e que foi pioneiro no uso mais agressivo dos sintetizadores. “Fomos pioneiros em meu país”, comenta, com orgulho mal disfarçado, o islandês Sigurjón Birgir Sigurõsson, ou simplesmente Sjón (pronuncia-se “chion”), como ele passou a assinar ao assumir, de vez, a carreira de escritor, no início deste século 21.

continua após a publicidade

Sjón é um dos destaques da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, cuja 15.ª edição começa nesta quarta-feira, 26. Ele participa da mesa Mar de Histórias, ao lado do carioca Alberto Mussa, às 17h45, no sábado, 29. Um encontro que promete ser promissor – enquanto Mussa utiliza com habilidade da ficção para recuperar a história do sincretismo do Rio de Janeiro, Sjón volta ao século 17 em seu romance Pela Boca da Baleia, lançado no País pela Tusquets. Em caminho paralelo ao do brasileiro, o islandês viaja ao ano de 1635 para acompanhar a trajetória de um velho curandeiro, Jónas Pálmason, que recorda passagens dramáticas de sua vida, como as mortes de três de seus filhos, o exorcismo de um cadáver ambulante e o triste fim de um grupo de baleeiros espanhóis, massacrados pela população de uma vila pesqueira.

continua após a publicidade

Sjón estabeleceu-se como escritor no início dos anos 2000, ainda que não abandone totalmente a música – além da experiência com o Medusa, ele estabeleceu uma parceria com o nome artístico mais reluzente de seu país, a cantora Björk. Junto, a dupla participou do filme Dançando no Escuro, do dinamarquês Lars von Trier, em 2001: ela interpretando e cantando, ele como autor da trilha sonora, pela qual concorreu ao Oscar daquele ano.

continua após a publicidade

Sobre sua trajetória, Sjón conversou com o jornal “O Estado de S. Paulo” por telefone, desde a Alemanha, onde participa de um curso para escritores.

Você é músico, escreve poesia e romances, ou seja, movimenta-se por vários estilos e gêneros. Há algum de seu preferência?

Hoje, sou romancista. Nos últimos 15 anos, publiquei nove romances e uma coleção de poesia. Ainda trabalho em outras áreas, como literatura infantil, além de escrever letras de canções. Mas penso em todos esses caminhos como uma forma de trabalhar em um romance. Eu me explico: um aspecto fascinante da literatura de ficção é sua possibilidade de absorver diversos estilos. Você pode incluir em um romance detalhes reais, assuntos infantis, poesia, letras de canções. Um romance é algo maravilhoso por se assemelhar a uma enciclopédia, que abraça todo tipo de material.

No início de sua carreira, parecia que você seguiria principalmente a música. O que provocou essa multiplicidade?

Quando formei com amigos o grupo Medusa, no anos 1980, trabalhávamos com o surrealismo que, entre vários aspectos, revelou um maravilhoso vínculo com histórias populares. E, como o surrealismo é, por natureza, algo antiacadêmico, percebi uma série de caminhos abertos para minhas pesquisas, o que só surtiria resultado se fossem expressas por outros gêneros que não a música. Por exemplo, para escrever Pela Boca da Baleia, estudei muito sobre os templários, alquimia, como as pessoas se favoreciam da medicina naquele século 17. Foi fascinante.

Acredito que você tenha estudado também os mitos e sua relação com os homens.

Sim. O mito foi uma importante forma que o homem descobriu para se situar no mundo. É um belo caminho para se conectar com as forças naturais do planeta. Acredito que, pelo estudo do mito, é possível determinar como o homem lida com a água, o fogo, o ar, a luz. A partir disso, é possível construir metáforas maravilhosas.

Quando fala de sua literatura, você já mencionou o colombiano Gabriel García Márquez. É possível dizer que ele é uma de suas influências?

Li Cem Anos de Solidão e ainda o considero um romance fundamental. Há fortes elementos de realismo (não apenas o mágico), que se aproximam da literatura islandesa, na qual diferentes lembranças da humanidade agem em um mesmo estágio. Há algo de realista na descrição de sonhos que são, na maioria das vezes, atos proféticos. É uma forma de explorar a realidade. Figuras como cavalos voadores são comuns em nossos livros. Assim, quando surgiu o boom latino-americano e chegou à Islândia, foi encarado quase como um fato normal.

Seu livro trata de uma época que faz muito sucesso hoje em dia, especialmente em séries, como Game of Thrones. O que você pensa sobre isso?

O passado, muitas vezes, interessa mais que o futuro. É interessante como, nos últimos anos, houve um interesse crescente por esse tipo de literatura. Antes, as histórias em quadrinhos criaram um universo de super-heróis que apontavam para uma humanidade do futuro e seus problemas. A solução desses problemas, porém, ficava sempre a cargo desses seres extraordinários. Com a tendência puxada por Game of Thrones, isso mudou: os super-heróis agora são aqueles homens valentes do passado. O que acho muito interessante.

É o que explica, por certo, seu interesse em Jónas, o protagonista de seu romance.

Com certeza. Meu interesse por ele começou, acredito, há uns 20 anos, quando li um artigo sobre um curandeiro, que também era um poeta, um cientista, um escultor de ossos, e que fora influenciado por Paracelso em sua visão de mundo. Curiosamente, cheguei até Paracelso a partir dos escritos de André Breton, que estava entusiasmado sobre como a ciência pré-iluminismo só podia ser compreendida hoje por meio do pensamento poético. Anos depois, descobri que esse homem deixou uma incrível riqueza de textos, nos quais se destacavam momentos turbulentos da história da Islândia, pois, com a Reforma, a sabedoria antiga foi banida como feitiçaria. Notei ali o caminho para uma bela história.

Como estudioso, você conhece algo da literatura brasileira?

Sim, um pouco. Durante muitos anos, Jorge Amado era o símbolo do Brasil. Mais recentemente, descobrimos a escrita penetrante de Clarice Lispector e Raduan Nassar, de quem li (e gostei) dois livros.

PELA BOCA DA BALEIA

Autor: Sjón

Tradução: Luciano Dutra

Editora: Tusquets

(208 págs., R$ 39,90)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.