Sétima arte amordaçada

A atriz Leonor Souza Pinto sempre se interessou em alimentar uma vida acadêmica, mas não encontrava um tema instigante. Até que uma pergunta de sua filha de 9 anos surgiu como uma luz: “O que é censura?”. “Percebi que as novas gerações desconheciam um fato marcante da cultura brasileira, que estava desaparecendo simplesmente por falta de pesquisas e discussões”, conta Leonor que, a partir de 1996, mergulhou em uma minuciosa pesquisa, que resultou na elaboração de um banco de dados que mapeia a ação da censura sobre o cinema brasileiro entre 1964 e 1988. O material, além de render um CD-ROM e um projeto de disponibilização digital, também é o tema da palestra que Leonor faz hoje, ao meio-dia, na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

São Paulo

– Ela enfrentou um tortuoso caminho até descobrir toda a documentação necessária, ou seja, os processos de censura dos filmes, que estavam espalhados pelo Departamento de Ordem Pública e Social (Dops) e Arquivo Nacional. “Senti uma grande necessidade de tratar do assunto, pois, além de ter vivido pouco tempo sob a ação da censura, mesmo as lembranças escassas eram muito fortes.” Ela se refere à proibição do longa Pra Frente Brasil, de Roberto Farias, censurado em 1982, por fazer referências explícitas à prática da tortura durante o governo militar. “Lembro quando assisti ao filme pela primeira vez: na saída do cinema, as pessoas estavam cabisbaixas, pois a maioria sofreu realmente a opressão daquele período”, conta a pesquisadora. “Essas lembranças, aliadas à dúvida da minha filha, me convenceram de que o tema necessitava de uma urgente pesquisa.”

Leonor estava na Alemanha, em 1990, quando começou o trabalho. Em uma notícia publicada pelo Jornal do Brasil, descobriu que todos os processos oficiais da censura tinham sido entregues ao Arquivo Nacional, em Brasília. Já vivendo na França e disposta a realizar seu doutorado em cinema, Leonor iniciou uma peregrinação de dois anos voltando ao Brasil por conta própria, em rápidas viagens, até obter uma bolsa que garantiu sua permanência durante seis meses. O pior ainda estava por vir – apesar do vastíssimo material, o Arquivo Nacional forneceu-lhe uma pequena lista de filmes já catalogados. “Além disso, o processo era muito demorado”

Leonor começou, então, a pesquisar em arquivos de jornais e revistas, além de entrevistar os próprios cineastas – a partir do material de que dispunha e do que acreditava ser possível consultar, ela listou 79 filmes nacionais do período entre 1964 e 1988. Eram longas realizados por 26 cineastas, dos quais três se apresentavam com a filmografia do período completa: Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos e Lúcia Murat.

Perseguições, confisco e resistência

Depois das conversas e da análise detalhada de 28 processos, Leonor desvendou a ação terrível e violenta da censura. “Além do veto às suas obras, Glauber, Nelson e Ruy Guerra eram também permanentemente seguidos”, conta Leonor que, a partir de um processo, conseguiu detalhes da vida de Guerra que a deixaram surpresa. “Em um determinado dia, foi possível dizer o que ele fez hora a hora, com quem falou e quem foi à sua casa.”

Ao entrevistar Lúcia Rocha, mãe de Glauber, Leonor descobriu que o cineasta sabia da perseguição, mas sua angústia era apontada como paranóia. “Segundo ela, Glauber ficava desesperado, apontando pessoas que cruzavam constantemente a janela da sua casa, sem que ninguém acreditasse”, conta a pesquisadora.

Outro caso grave envolveu Nelson Pereira dos Santos. Em 1966, depois de um período vivido em Brasília, ele voltou ao Rio, onde realizou um projeto elaborado. Era uma sátira urbana, em que um surfista (o primeiro papel vivido por Arduíno Colassanti) tinha um pai general. “O filme chamou-se El Justiciero e era uma alegoria que ironizava os militares”, conta. “Mas, apesar de inicialmente liberado, o longa foi logo totalmente censurado.”

Pior: as cópias foram confiscadas, até mesmo os negativos que estavam no laboratório Líder. Em pouco tempo, Nelson percebeu que não havia mais nenhum vestígio do filme, nem mesmo os documentos da censura. “A intenção, parecia, era confirmar a inexistência do longa”, observa Leonor, que encontrou apenas um único documento sobre El Justiciero – tratava-se de um memorando reservado da Marinha em que o diretor da censura tentava explicar a impossibilidade de confiscar um filme que já tinha sido liberado.

Quando apresentou o documento ao cineasta, durante uma entrevista, a câmera de Leonor gravou uma reação exaltada: “Nelson ficou eufórico, pois fazia anos que buscava uma comprovação de que realizara o filme”. Em sua pesquisa, Leonor notou também que, a partir dos anos 80, os censores deixaram de implicar com os filmes para cinema e se debruçaram sobre os exibidos na televisão. “Nessa época, muitos cineastas tinham desistido de filmar por conta da perseguição ou então realizavam obras difíceis”, observa. “Se por um lado ofereciam sua resistência, por outro os cineastas afastaram-se do público.”

Surgiu também uma tática eficiente: como sabiam que enfrentariam cortes, os cineastas passaram a incorporar cenas dispensáveis em seus filmes, que seriam oferecidas como opção de corte aos censores, preservando cenas essenciais. “Os censores sabiam o que faziam, apesar do tom jocoso com que eram tratados”, comenta Leonor. “Apesar do tom absurdo e hilariante dos textos que escreviam, acredito que isso era uma estratégia bem elaborada do governo militar.”

Leonor, que recentemente terminou de rodar O Brilho das Coisas, filme de Helena Solberg, prepara com a Universidade Federal Fluminense um CD-ROM, além da disponibilização do material em arquivos digitalizados. Também a pesquisa, defendida como tese na Universidade de Toulouse, na França, deverá ser editada.

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