Setenta anos depois de desaparecer, Glenn Miller ainda é único

Quem estava entre as tropas aliadas que haviam libertado a França dos alemães diria que o silêncio daquela manhã de 16 de dezembro de 1944 durou dois séculos. Outros jurariam que sentiram no peito a força de um morteiro nazista. Os soldados receberam as primeiras notícias quando se preparavam para comemorar a vitória ao som da orquestra do major Alton Glenn Miller, um astro, o maior vendedor de discos do mundo desde 1939, o grande Glenn Miller. O avião monomotor de nove lugares que havia partido com ele de Twinwood, ao sul da Inglaterra, não havia chegado a Paris. Além do músico e do piloto, dois oficiais norte-americanos estavam a bordo. “Eles não chegaram” parecia uma notícia mais devastadora do que “eles morreram”.

Mas, talvez, estivessem certos. Glenn Miller apenas não chegou. Setenta anos e um dia depois de desaparecer entre as nuvens de uma noite de tempestade, talvez ele próprio não soubesse em vida ter criado um som de orquestra à prova de temporais. À frente de uma das fundamentais big bands brancas da era do suingue, Miller usou combinações de timbres, sobretudo entre clarinetes, trombones, sax e trompetes, com tamanha propriedade que ergueu um monumento no jazz. Ainda que toque um tema desconhecido, se é que sobrou algum, duas notas e sabe-se que aquele som sai de sua orquestra.

Arranjador e condutor sublime, muito mais do que trombonista – sua condição de origem – Miller criou a textura da seda para embrulhar paixões ao mesmo tempo em que antecipou, com o suingue de In The Mood, o que quinze anos depois seria conhecido como rock and roll. Nascido na pequena Clarinda, estado de Iowa, Estados Unidos, entendeu-se com os sopros aos 11 anos, assim que ganhou de presente um trombone. Colocar clarinetes ao lado de saxofones foi a ideia que teve aos 34 anos, quando formou sua primeira big band. Uma ascensão mágica, iniciada assim que o mundo do jazz identificou o “som Glenn Miller”, o colocou como maior sucesso fonográfico em 1941, quando saiu seu disco Chattanooga Choo Choo, registrado como o primeiro álbum da história a vender um milhão de cópias.

A guerra chegou e acabou com a brincadeira de Miller. Ou começou outra. Assim que soube do ataque japonês à base norte-americana de Pear Harbor, no Havaí, Miller pendurou o trombone, mandou os músicos para casa e alistou-se nas forças armadas. Mas já era grande demais e, mesmo levando insígnias de capitão no ombro, recebeu uma missão longe do front: Glenn Miller iria subir o moral dos combatentes aliados levando a melhor música que poderia criar para eles. Reformou então a banda militar e seguiu de base em base com sua Glenn Miller Army Air Force Band se apresentando por mais de 800 vezes em um ano. As tropas da Europa e da África que não podiam assisti-lo o ouviam Moonlight Serenade pelo rádio. A mesma intuição que o trairia na noite em que entrou no monomotor esteve ao seu lado em junho de 1944, quando Miller decidiu transferir sua banda do hotel Sloane Court, em Chelsea, para Bedforshire. Um dia depois da retirada dos músicos, o hotel foi destruído por um bombardeio.

Um filme lançado em 1956, Música e Lágrimas, trouxe no calor das emoções de um homem que havia acabado de assisti-lo uma versão aterradora sobre o desaparecimento de Miller. Fred Shaw era um ex-navegador de um avião bombardeiro Lancaster que estava carregado de bombas para jogar sobre as cabeças dos alemães, até que seus superiores deram ordens para que abortasse a missão, já que as tropas nazistas haviam acabado de se render. Com permissão para se livrar das munições nos céus do Canal da Mancha, Shaw as lançava uma a uma ao mar quando percebeu que um pequeno avião havia sido atingido por uma delas. “Uma pipa voou”, disse ele ao artilheiro. E não se falou mais no assunto. Ao ver o filme, o militar bateu horário, dia e tipo de avião para afirmar que o avião de Glenn Miller havia sido atingido por engano. Sua versão ainda carece de provas técnicas.

Miller, ao contrário de correntes biográficas que consideram sua importância relativamente pequena na evolução do jazz, tem mais do que a criação de um som a seu favor. “A abertura que ele dava aos músicos para improvisar foi algo muito importante naqueles anos 40. Sua marca registrada não foi sobrepujada por nenhum outro músico do jazz”, diz ao jornal O Estado de S. Paulo o pesquisador Zuza Homem de Mello. As buscas pelos destroços do avião de Glenn Miller terminaram sem que nenhuma parte da fuselagem fosse encontrada. Ele não chegou para a festa, mas deixou música suficiente para embalar salões pelos próximos séculos.

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