Respondendo a uma pergunta do Grupo Estado durante a coletiva de imprensa do júri, o diretor do Festival de Veneza, Marco Muller, negou que tenha chamado de "brasileiros demais" os filmes apresentados como candidatos à seleção de Veneza. "Fui mal interpretado numa entrevista, mas talvez o fato de eu ter mãe brasileira me torne mais sensível para os filmes desse país", disse. Citou o filme de Andrucha Waddington (Casa de Areia) como um dos que foram apresentados ao comitê de seleção e não passaram e elogiou o de Lírio Ferreira, Árido Movie, selecionado para a mostra paralela Horizontes.

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O fato é que não apenas a ausência de filmes brasileiros mas latino-americanos em geral no concurso mais importante, Venezia 62, que disputa o Leão de Ouro, acabou pegando mal – para os ausentes, é claro. A mostra desenhada por Muller equilibra-se sobre um tripé: Estados Unidos, Europa e Ásia. Essa a geografia cinematográfica que entra no mapa veneziano. Explica-se. A Europa (e a Itália, em particular) deve ser bem contemplada, pois, afinal, se trata de um festival italiano e europeu, embora o presidente do júri, o cenógrafo Dante Ferretti tenha tecido loas à linguagem universal do cinema durante a coletiva de imprensa. A Ásia comparece com força, e por uma boa razão – nos últimos anos é daquela parte do mundo que têm vindo os filmes mais criativos. Mas, mesmo assim, Muller está tendo a momento de justificar que foi o critério de qualidade que pesou na escolha e não o fato de que ele seja um especialista em China.

Finalmente, os Estados Unidos, que comparecem com o número recorde de 11 produções nos diversos segmentos do festival – mostra principal, paralelas e seção Fora de Concurso. E isso por uma boa razão: por uma questão mercadológica, não se faz festival sem os americanos, sem seus astros e estrelas, sem a força de sua mídia e de seu poder econômico. Achar que festivais do porte de Veneza, Berlim e Cannes selecionam os filmes baseados unicamente em sua qualidade estética é o mesmo que acreditar em duendes.

Assim, Muller escolheu um filme de certa forma inusitado para abrir um festival de ponta – o "capa-e-espada" chinês Sete Espadas, de Tsui Hark. Considerado um mestre na arte da narrativa de histórias populares de samurais, Hark trabalha de maneira diferente dos outros filmes do gênero como O Tigre e o Dragão, Herói ou O Clã das Espadas Voadoras. Dentro dos limites do gênero, Sete Espadas é mais "realista", digamos assim. Você não vê nele aqueles vôos de espadachins flutuando em cima de telhados ou de árvores ou caminhando sobre a água. Mas, claro, é comum que um guerreiro do "bem" enfrente vários adversários de uma vez e saia vitorioso.

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A história é antiga: os sete espadachins defendem um povoado ameaçado pelo ditador de plantão. Já se disse, e essa interpretação merece respeito, que, numa época de valores frágeis como a nossa, esse tipo de história, com gestos heróicos desprendidos e exaltação do heroísmo, de luta leal e de amizade, ainda tem o que dizer. Sete Espadas apresenta qualidades, mas não é filme para abrir festival sério, como tem sido dito pelos corredores de Veneza.

Outra foi a maneira de George Clooney comentar o tempo atual. Seu Good Night, and Good Luck, o primeiro concorrente ao Leão de Ouro, foi muito aplaudido na sessão de estréia. Convenientemente filmado em preto-e-branco, fala da época do macarthismo e da resistência de um apresentador de programa de TV àqueles tempos sombrios. Muito sóbrio e digno, o filme parece menos uma reminiscência histórica do que um alerta para a época atual. O recado é o seguinte: quando um país passa a ver perseguidores em toda a parte, corre o risco de considerar a liberdade como uma espécie de luxo. Perde assim a essência da democracia. Aconteceu na época da caça às bruxas. Pode estar acontencendo agora. O filme é um elogio ao apresentador Edward R. Murrow, considerado um ícone na luta pela liberdade de expressão em tempos difíceis. Ele é vivido pelo ator David Strahairn, magistral no papel do jornalista durão, de uma integridade de rocha. Clooney, discreto, faz o seu produtor, Fred Friendly.

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Na badaladíssima coletiva de imprensa, George Clooney derramou charme para a platéia (feminina, masculina e mais ou menos) e se disse empenhado no tema porque é filho de jornalista e cidadão consciente. Sabe que o medo é a pior ameaça à democracia porque faz com que as pessoas abdiquem da liberdade em troca da segurança. E o sentimento de insegurança beneficia a caça às bruxas, como aconteceu nos EUA durante o período da guerra fria. O filme, que critica também a espetacularização do noticiário político, usa imagens de arquivo do senador MacCarthy. "Não quis me valer de um ator para interpretar MacCarthy", disse Clooney, "porque isso enfraqueceria o filme". "Além disso, dificilmente encontraríamos um ator tão bom quanto o próprio MacCarthy", completou.