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‘Séries médicas ajudam a formar péssimos profissionais’, diz Caco Ciocler

A partir das 22h deste domingo, 11, Caco Ciocler será visto como Paulo, médico humanista protagonista da série Unidade Básica, primeira série 100% brasileira do Canal Universal. E antes que você veja uma incoerência entre a frase do ator, usada no título, e seu novo trabalho, vai aí uma explicação: trata-se de uma série médica, sem apelar para o estereótipo do gênero, bastante popular na TV americana.

Mais uma informação que talvez soe contraditória: Caco se inspirou no personagem House, médico interpretado por Hugh Laurie na série homônima, maior sucesso de audiência do canal. Na comparação entre os personagens, o que se verá de semelhante são alguns traços do temperamento, como o mau humor, o tom irônico no trato com os colegas e as respostas afiadas. E para por aí.

“Ele é o dr. House e o oposto do dr. House ao mesmo tempo”, disse Caco. “O House, se pudesse, tiraria a pessoa e ficava só com a doença. É como se o paciente atrapalhasse ele. E o Paulo é o contrário, quer o paciente e não a doença”, explica.

Em Unidade Básica, Paulo segue a linha da medicina humanizada, que investiga o arranjo familiar do paciente para poder chegar a um diagnóstico mais preciso em cada caso. O ritmo urgente, pessoas à beira da morte e descobertas de doenças raras estão fora da trama. O foco aqui é fugir do ambiente fantasioso presente em boa parte das tramas médicas americanas e dar atenção à realidade da saúde pública brasileira.

“As séries americanas são um problema. É uma questão muito discutida nas faculdades de medicina. House, por exemplo, faz um mal danado para os alunos. É um tremendo entretenimento, mas as pessoas estão saindo das faculdades achando que serão como o personagem, e que a cada dia terão uma doença rara para descobrir. Estas séries só ajudam a formar péssimos profissionais”, opina o ator.

Leia abaixo a entrevista com Caco Ciocler:

Para começar, me fale quem é o Paulo?

Não dá para falar do Paulo sem falar do que a série se propõe. São duas coisas. O primeiro é que tem uma brincadeira, no bom sentido. As séries médicas fazem sucesso no mundo todo, mas elas sempre lidam com situações de emergências, de doenças raras, de estresse. Então tem essa brincadeira de pensar como seria uma série médica no sistema básico de saúde, que trata dos primeiros atendimentos e que não tem essa pegada tão emergencial. E a segunda discussão da série, que talvez seja a mais importante, é refletir uma discussão mundial e superurgente, dessa briga entre as duas visões da medicina. Existe um movimento muito preocupado mundialmente com essa nova geração que está se formando nas universidades de medicina, saindo de lá muito pouco preparados. Muitos alunos têm a visão de que essa é uma profissão que vai trazer dinheiro, fama, e que cada dia vão descobrir doença inéditas…

E que os aplicativos de celulares aceleram os diagnósticos…

Também tem isso. E estão muito pouco capazes de fazer um diagnóstico. Mandam fazer um exame, um raio X, e ficam cada vez menos capazes de olhar o paciente como um todo e de fazer um diagnóstico clínico. É uma discussão muito urgente. Estou falando tudo isso para poder falar sobre o Paulo (risos). O Paulo é o representante dessa outra medicina que escolheu estar em uma Unidade Básica, diferente do personagem da Ana Petta, a dra. Laura. Hoje em dia, parece que passar por uma Unidade Básica virou estágio obrigatório para alunos de medicina. As pessoas acham isso um horror e querem se livrar disso…

É por que elas ficam em bairros periféricos?

É, e acham um horror trabalhar com a saúde pública e querem ficar ricos, famosos e especialistas. Acho que a série vem escancarar esse embate para a população num momento muito interessante. E o dr. Paulo é essa pessoa que escolheu estar nesse lugar, é um médico humanista, que acredita na medicina de família, que acredita que o ser humano é uma coisa só e não partes segmentadas, que acredita que provavelmente mais de 90% das doenças tenham causas emocionais e de arranjos familiares. Não usa jaleco porque ele quer se aproximar dos pacientes. Acredita na vocação do médico como uma pessoa que tem que dedicar sua vida para a cura e não mede esforços para resolver os problemas das pessoas. E a gente achou de bom tom temperar ele com algumas características para que não ficasse chato, um santo que resolve tudo.

E é onde entra esse humor sarcástico?

É onde entra o humor e eu não posso esconder isso. O dr. House foi uma referência. Até porque estamos no mesmo canal, e eu quis aprofundar um pouco essa brincadeira. Ele é o dr. House e o oposto do dr. House ao mesmo tempo. Ele traz algumas características, como a irreverência, o passar do ponto e a obsessão em resolver as coisas.

Ele tem algum tipo de vício?

Tem e isso será desvendado aos poucos. Mas ele é o oposto do dr. House. O House, se pudesse, tiraria a pessoa e ficava só com a doença. É como se o paciente atrapalhasse ele. E o Paulo é o contrário, quer o paciente e não a doença. E o sarcasmo dele serve para essa nova geração, este outro tipo de medicina que ele não tem a menor paciência.

O texto está bem bacana. Tem uma parte que seu personagem fala para a estagiária, que está horrorizada com o trabalho na UBS: “Por que você não finge que estamos num seriado, destes de hospital…”. Começa com um pé no peito da garota, pega exatamente o que pontuou no começo, de as séries americanas não transmitirem nosso cotidiano. Eu queria saber se você visitou alguma UBS e com quais tipos de profissionais conversou?

As séries americanas são um problema. É uma questão muito discutida nas faculdades de medicina. O dr. House, por exemplo, é uma coisa que faz um mal danado para os alunos. É um tremendo entretenimento, mas as pessoas estão saindo das faculdades achando que serão como o dr. House, e que a cada dia terão uma doença rara para descobrir. Elas só ajudam a formar péssimos profissionais. Então nós quisemos incluir essa brincadeira. Essa frase, se não me engano, nem estava no roteiro, foi uma improvisação nossa para mostrar que a série é exatamente o contrário. Por outro lado, o grande desafio é encontrar a forma de manter esses ingredientes essenciais dramaturgicamente, que é a urgência, os casos impossíveis, fundamentais para uma série médica dentro desse universo que não é do universo da emergência.

E em relação às suas visitas às UBSs, conversas com profissionais da área…

Fiz algumas visitas a uma UBS do Brás (região central de São Paulo), conheci o médico no qual o dr. Paulo foi inspirado, e foi muito importante porque eu, pelo menos, tinha uma visão um pouco estereotipada do que seria uma UBS. Foi importante entender o dia a dia do local. Fui com a ideia de que teria uma ambulância na porta, pessoas machucadas… mas não é nada disso. De vez em quando aparece um caso emergencial. Pude acompanhar o trabalho desse médico, as consultas, e ver como ele é querido pelas pessoas, como ele sabe quem é quem, e como o trabalho das enfermeiras e dos agentes comunitários são importante.

Dentro desses casos que você acompanhou, qual foi o que mais te impressionou?

Foi o de um policial que levou um tiro num assalto e perdeu metade do cérebro. Fica dentro de casa, em estado semivegetativo. Fui na casa dele e a vida da esposa ficou em função desse marido, que não tem perspectiva nenhuma de melhora. É muito importante o trabalho dessas pessoas, porque a mulher fala que está precisando de fraldas, remédios, e como ela não tem como sair de perto dele, não consegue comprar. Foi uma situação que me chocou muito. Aí você começa a cuidar das pessoas que estão em volta. Tem o caso de duas senhoras, duas irmãs, uma está em estado vegetativo e a outra precisa tomar vacina, mas não vai ao hospital porque não pode deixar a irmã. São questões que a gente não pensa e começam a envolver a família inteira, e o médico de família tem que dar conta de todos os pacientes e todas as questões emocionais que envolvem o problema.

Depois que gravou essa série, como está sua visão sobre a saúde no Brasil?

Mudou, porque eu não conhecia. Era uma questão de ignorância da minha parte. Achei o trabalho das UBSs fundamental, de entender que as pessoas são pessoas, de que há pessoas que não podem sair de casa para se tratar, e também por desafogar as emergências dos hospitais, e por resolver problemas antes que eles apareçam. Esta é a tal da medicina preventiva, que você só consegue fazer se tiver histórico, acompanhamento. Se você tratar a medicina só a partir do momento em que a doença aparece, vão morrer mais pessoas, vai ter mais gasto de dinheiro e o Estado não vai dar conta. É tão mais inteligente e humano que não tem nem discussão.

Neste ano você completa 20 anos na televisão. Qual a importância deste trabalho em sua carreira?

Não sei se foi porque é em um canal a cabo ou se porque tive a sorte de pegar uma equipe democrática e bacana, mas é que eu nunca fiz um trabalho onde eu tivesse tanta liberdade para interferir em todas as searas. Desde quando o texto chegou, nas filmagens, edição, fui chamado para participar de todos os processos, que, para mim foi muito importante, porque não são coisas isoladas. Às vezes, você faz uma coisa no set e a edição muda. Foi importante eu estar junto em todas essas etapas para a construção desse personagem. Como as filmagens não foram 100% lineares, tivemos que prestar atenção em duas coisas: na curva dramática de cada episódio e na curva dramática da série como um todo, porque os personagens vão se transformando e as relações entre eles também. Então tinha que ficar muito atento com essas curvas que não foram filmadas em sequência.

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