Sergio Camargo marcou a arte contemporânea com o material do Renascimento

São várias as classificações que invariavelmente acompanham as análises da obra do escultor carioca Sergio Camargo (1930-1990), homenageado com a exposição Luz e Matéria, que será aberta neste sábado, 28, no Itaú Cultural.

Embora nunca tenha se filiado oficialmente a nenhum movimento, ele já foi chamado de construtivista, minimalista e até de cubista, por fragmentar elementos geométricos (como o cilindro) para chegar a uma visão total da figura. Por fazer do mármore de Carrara, usado pelos renascentistas, sua matéria-prima essencial, da década de 1970 em diante, Camargo ficou também associado com a luz que o material reflete – e porque o mármore reage à instabilidade dessa luz, os curadores da mostra decidiram evitar uma iluminação forte sobre as mais de 100 peças da mostra.

Na exposição do Itaú Cultural, a luz é homogênea. Não serve ao propósito de dramatizar, de transformar o espaço expositivo em cenário teatral. Vai, portanto, na direção contrária ao gosto contemporâneo pelo espetáculo. Não há sombras fortes conduzindo o espectador a equívocos. Até mesmo ao reproduzir livremente o último ateliê do escultor em Jacarepaguá, no piso 2 da mostra, os curadores Paulo Sérgio Duarte e Cauê Alves tiveram o cuidado de não estimular o visitante a exercícios fetichistas. “Temos uma representação do espaço físico do ateliê, que, ao mesmo tempo, é um espaço mental”, justifica o curador Cauê Alves.

De fato, a relação de Sergio Camargo com seus quatro ateliês foi além da dimensão física. Cada um deles determinou uma nova etapa na produção artística do escultor. No primeiro, em Laranjeiras, no Rio, que dividiu nos anos 1950 com os escultores Frans Krajcberg e Franz Weissmann (1911-2005), Camargo produziu figuras femininas e torsos em bronze, que revelam sua preocupação com o volume e com os cortes, característicos de seus trabalhos geométricos posteriores. Já no ateliê francês de Malakoff, no sul de Paris, em 1961, ele esculpiu seus primeiros relevos (cilindros brancos em madeira cortados e dispostos sobre uma superfície branca), alguns destruídos pelo artista, insatisfeito com os resultados.

Em 1964, já instalado em Massa-Carrara, na Toscana, ele passou a usar o mármore. O escultor fez nesse ano sua primeira individual no exterior, na Galeria Signals, de Londres, a convite do crítico inglês Guy Brett, dando seu passo maior na conquista da Europa, ao esboçar a coluna Homenagem a Brancusi e a Torre Modulada, ambas exibidas dois anos depois na Bienal de Veneza de 1966. Finalmente, em 1974, de volta ao Rio, além do mármore branco, os protótipos e estudos feitos na Itália ganham vida em peças de negro belga que marcaram o último período de sua produção.

Há, na mostra, exemplos das principais fases impulsionadas por essas mudanças de ateliê, mas a curadoria acertou em não adotar a ordem cronológica na organização das salas, uma vez que Camargo retomava com frequência questões que o acompanharam desde o início de carreira, quando criou as citadas figuras femininas, cujos corpos, longe de serem expansivos, se contraem a ponto de virar uma massa cilíndrica fechada em si mesma. Dos torsos nasceriam as “trombas”, como ficaram conhecidos seus relevos, que saem do plano para conquistar o espaço.

“Nos anos 1970, uma onda de relevos dominou a Europa, mas nenhum deles tem o jogo da ordem e do caos como as esculturas de Camargo, que teve grande influência sobre a produção de outros artistas”, observa o curador Paulo Sérgio Duarte, citando Arthur Luiz Piza, entre eles. Esses relevos, embora não comportem metáforas, lidam com questões como o movimento caótico da urbe, em que o processo de individuação se torna mais difícil à medida que cresce a concentração de elementos. Isso se torna mais facilmente reconhecível numa obra pública como o muro estrutural em concreto branco que Camargo criou (em 1967, mas só instalado em 1970) para o Palácio do Itamaraty, em Brasília, a pedido do próprio Niemeyer, que o público poderá ver por meio de projeções na parede (no piso 2).

Não existem no Brasil muitas obras públicas do artista. Na exposição, há imagens da parede monumental de concreto branco (também no piso 2) feita para o prédio do Centro Empresarial Itaú Unibanco, no Jabaquara, em 1986. Além dele, há um monumento esculpido para o Parque da Catacumba, no Rio, hoje em péssimo estado, e uma escultura com mais de 5 toneladas e quase 4 metros de altura, na Praça da Sé, em São Paulo. É curioso que peças que hoje valem uma fortuna (algumas atingem US$ 2 milhões) e pertencem a colecionadores particulares estejam, a exemplo das duas últimas obras públicas citadas, em situação precária – e há dois relevos de grandes dimensões, no primeiro andar da mostra (o1M), que estão a exigir cuidados de seus proprietários.

Já as “baleias”, esculturas em negro belga assim apelidadas por sugerir a forma do cetáceo, estão impecáveis, refletindo a luz em sua superfície polida. Na mesma sala onde estão instaladas, os curadores montaram nas laterais uma seleção de cartas trocadas entre Sergio Camargo e alguns de seus amigos íntimos, como Mira Schendel, Willys de Castro e o crítico Mário Pedrosa. São 27 delas, escritas entre 1960 e 1980, uma delas, a de Mira, comentando a exposição organizada na galeria Signals de Londres por Guy Brett, a quem apresentou a obra de Schendel, além do trabalho de Lygia Clark e Hélio Oiticica, abrindo generosamente a porta dos museus europeus para eles.

Vale lembrar que um ano depois da exposição inglesa, em 1965, Camargo ganhou o prêmio de melhor escultor nacional na Bienal de São Paulo, sendo escolhido para representar o Brasil na Bienal de Veneza (1966), para a qual voltaria em 1982 pelas mãos do curador Paulo Sérgio Duarte, que também levou para a mostra italiana o então iniciante Tunga. “Ele tinha o maior interesse em Tunga e em outros artistas jovens do período, como Waltercio Caldas”, lembra Duarte. Esse interesse, considerando os dois citados, foi recíproco.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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