Saudades de Roa Bastos

Talvez seja oportuno lembrar que, antes de consagrar-se como um dos mais importantes romancistas de sua geração, a poesia foi o primeiro porto de Augusto Roa Bastos. Seus versos, embora desconhecidos do grande público, são o testemunho e a semente de todo o seu processo criativo e como tal devem ser lidos e apreciados.

Roa Bastos nasceu em 1917 em Assunção e passou a maior parte da juventude em uma cidadezinha a 200 quilômetros da capital. Sua mãe teria sido sua primeira mentora, ao lhe narrar lendas em guarani e estimulá-lo desde cedo a ler literatura. Com apenas 15 anos abandonou o colégio para trabalhar como enfermeiro voluntário na Guerra do Chaco e por volta dos 17 já publicava poemas de forma esporádica num jornal local. Seu primeiro livro El Ruiseñor de la Aurora (1942) serviu para convertê-lo instantaneamente numa das mais jovens promessas da poesia paraguaia. Em 1944 incorporou-se ao grupo pós-vanguardista O Ninho da Alegria, que pretendia renovar a lírica e as artes plásticas do seu país. Porém, o comprometimento de seus textos jornalísticos, sua participação ativa na Guerra Civil de 47 e o posterior advento da ditadura de Stroessner forçaram-no a um exílio de quase 50 anos. Em Buenos Aires compôs a maior parte do seu segundo livro de poemas El Naranjal Ardiente (publicado apenas em 1960). Mas curiosamente, a partir de 1953, começou a se dedicar de forma exclusiva à prosa, silenciando por quase 30 anos sua atividade poética. Até que em setembro de 1983, de forma surpreendente, sua vocação primeira voltou a dar uns discretos frutos: numa separata da revista Cuadernos Hispanoamericanos, de Madri, apareceu um conjunto de poemas intitulado Silenciario. No entanto, estes seriam os últimos, porque sua voz de trovador nunca mais tornaria a soar.

Como ensaísta foi um dos poucos que ousaram escrever sobre o processo criativo. Suas reflexões sobre esse tema se encontram plasmadas em três valiosos estudos que ainda hoje contribuem para um melhor entendimento dos intrincados mecanismos da construção literária. Ao ler esses textos, temos a impressão de que podemos apreender com ambas as mãos a intangível arte dos poetas. São seus os seguintes pensamentos: ?No olvidemos que un poema hinca sus cimientos en el alma?, que ?El hombre camina entre símbolos, alusiones y mitos? e que ?El poeta trata de revelárselos? e que ?La lógica del lenguaje termina exactamente donde comienza la lógica de la imaginación, del sentimiento o de las intuiciones? porque ?Lo maravilloso de un poema es que siempre está a la espera en la esquina de su noche?.

Sua poesia é pródiga em revelar imagens de solidão, ausências e silêncios. Suas experiências com as guerras e o desterro ficaram gravadas a ferro e fogo em sua ?gran catástrofe de recuerdos?, a ponto de confessar que: ?hasta en mi aliento encuentro cicatrices?. Por essas feridas abertas com palavras escorrem espessas gotas de sangue e de ressentimento. Seu país (una isla de tierra rodeada de tierra) e sua gente (entregue ao despotismo da miséria: ?Qué dura tiranía es para el pobre la del pan que le roba sus poemas?) estão associados quase sempre à idéia de desamparo, destruição e morte:

Tan tierra son los hombres de mi tierra

que ya parece que estuvieran muertos,

por afuera dormidos y despiertos

por dentro con el sueño de la guerra.

Tentar resgatar os motivos que levam um poeta a converter-se em prosador é tão difícil como tentar entender a própria vocação literária. Atribuir apenas ao escritor a culpa pela omissão de seus textos poéticos pode ser uma solução enganosa. Talvez Roa Bastos tenha sido mais uma vítima da precariedade editorial, da escassez de público leitor e principalmente da inibição cultural que impera em países menos desenvolvidos e que emudece os jovens talentos. Talvez seja mais ou menos isso que ele tenha querido nos dizer num dos poemas que encerram sua coleção de silêncios:

UNI-VERSO

en el principio todo era ya afín.

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