O samba que não nasceu em Madureira nem no Recôncavo Baiano baixou na noite de uma quarta-feira, na voz de uma loira tatuada com o espírito de quem parecia prestes a cantar Janis Joplin. Janis também corre por suas veias, mas ela não faria isso no território sagrado de Noel Rosa e Wilson Batista: Rua Mem de Sá, Lapa, Rio. Grace Carvalho subiu ao palco e algo mexeu com os poucos metros quadrados da casa Carioca da Gema. Havia ali uma luz de outras cores e uma pegada mais vigorosa, um jeito próprio de dividir a melodia e uma postura de cena que os músicos, se não reconheciam sua origem, tinham uma certeza: Grace não era do Rio.
Grace Carvalho é de Goiânia, terra que por pelo menos duas décadas teve a música sertaneja na vitrine. Ela se mudou há dois anos para o Rio depois que, como disse o jornal goiano O Popular, ajudou a revigorar o cenário do samba em sua cidade. Caiu nas cordas do violonista e produtor também de Goiânia Rogério Caetano quando decidiu fazer seu primeiro álbum do gênero e se impôs. “Uso o fato de ser goiana a meu favor, isso causa curiosidade. Não preciso deixar de falar ‘porta’ pra falar ‘dois'”, diz, imitando o sotaque goiano no erre de porta e o carioca no esse de dois. Quando seu show termina, ela é cercada por uma plateia que quer beijá-la.
Grace representa um dos sambas que não nasceram em Madureira nem brincaram no Recôncavo Baiano. As cenas fora do eixo mais visível de Rio-São Paulo-Bahia que sempre existiram ganham força quando mostram uma geração de cantoras que não apenas reproduzem aquilo que vem das matrizes, mas também perdem o pudor de criar sobre elas. Assim como Grace faz com Goiás, Deborah Vasconcellos desenha o samba de Brasília, Karynna Spinelli o do Recife, Karine Telles inventa sobre o samba de Minas e um jovem compositor, Arthur Espíndola, de Belém do Pará, cria o que chama de “samba amazônico”. “Essas produções locais estão indo agora para o Brasil todo”, diz Rogério Caetano que, desde sua chegada ao Rio de Brasília, onde foi criado, já trabalhou com Zeca Pagodinho, Teresa Cristina, Arlindo Cruz, Fundo de Quintal, Martinho da Vila e Monarco.
Ainda que tímida, Brasília sabe sambar. E seu samba sai cheio de riqueza harmônica da Universidade de Brasília, onde estudam muitos de seus representantes. O maior nome de uma primeira geração revigorada é o do bandolinista Hamilton de Holanda, ao lado do violonista Daniel Santiago e do baixista Andre Vasconcellos. De uma segunda, vem a cantora Deborah Vasconcellos. Seu disco Casa Arrumada será lançado no dia 24, com produção de Rafael dos Anjos, outro jovem craque das seis cordas do planalto. Uma das músicas mais fortes é Se É Pra Fazer, Faz Direito, que aponta para uma produção de base cheia trabalhada na tradição com violões de seis e sete, dois cavacos e um paredão percussivo. “A linguagem do samba brasiliense passa por um cuidado grande com as harmonias”, diz Deborah. “E o disco tem justamente essa proposta, a de juntar essa sofisticação de Brasília com a batucada do Rio, que é a melhor do País.”
As universidades dos melhores sambas que saem do Recife são os terreiros de candomblé. E Karynna Spinelli, cantora e compositora de 95% de tudo o que canta, é hoje uma de suas maiores vozes. Ela acaba de lançar seu segundo disco, Negona, com uma força percussiva marcada na cultura de terreiro pernambucana.
Uma primeira audição de sua sonoridade pode levar as percepções equivocadamente à Bahia de todos os santos e quase todos os sambas não fosse por um detalhe técnico: a raiz da nação africana que predomina nas terras recifenses é a nagô, enquanto a Bahia tem mais familiaridade com as batidas ketu e jeje. Na prática, a diferença de acentos rítmicos faz mudar os toques. Ou seja, quase tudo. E surgem também alguns instrumentos. Uma das marcas em seus arranjos é o uso do percussivo ilu. “Creio que ele seja usado só por aqui”, diz a cantora.
Sua figura é conhecida pela comunidade sambista desde que participou da fundação do Clube do Samba do Recife, em 2005, que hoje leva mais de 5 mil pessoas às ruas. Uma suposta “ditadura do frevo” em dias de carnaval, para ela, não passa de outra imagem equivocada. “Apesar de o frevo ser muito tocado, o samba tem espaço em todos os dias de festa.”
Os modelos de carreira das sambistas fora do eixo são dois: enquanto algumas preferem se mudar para centros de estruturas mais sedimentadas, outras criam seus circuitos em suas regiões. Deborah Vasconcellos está de malas prontas para o Rio. “Os cariocas nascem respirando samba e criam um contato forte com a raiz, com as escolas, é algo cultural. Brasília, por ser uma cidade bem mais nova, ainda não tem essa cultura.”
Já a pernambucana Karynna não pensa em deixar os terreiros do Recife, embora mantenha uma agenda de shows no Rio e em São Paulo. A deficiência que percebe é de compositores. Sem eles, fica bem mais lento o processo de produção de um repertório pernambucano legítimo. “Ainda há um preconceito, pessoas que dizem não querer ouvir ‘macumba’ e os que só querem saber do candomblé. Mas o que falta mesmo são novos compositores.” O assunto, para a rainha Beth Carvalho, termina assim: “No fundo, todas querem o Rio”.
São Paulo foi um destino natural para a mineira de Uberlândia Karina Telles. Sua voz macia de grave espaçoso canta um samba forjado nas festas de Folia de Reis e na tradição do congado de Uberlândia. Ouvinte de Clara Nunes e frequentadora do coral de missas católicas desde cedo, estudou no Conservatório Estadual de sua cidade até começar a aparecer na cena mineira. Cantou na noite com o violonista Arnaldo Terra e com Virgílio Azevedo até que formou o grupo Flor do Samba, uma celebridade entre o público mineiro. Conheceu o sambista paulista Eduardo Gudin em um show que ele fazia em Uberlândia e seu caminho mudou. Veio para São Paulo há cinco anos, onde ganhou o comando das rodas de sexta no Bar do Alemão, de propriedade de Gudin, e foi convidada para participar do grupo Notícias Dum Brasil, do mesmo Gudin, que já revelou cantoras de respeito como Monica Salmaso e Fabiana Cozza.
Enquanto o grupo finaliza a gravação de um novo disco, Karine canta na pequena roda do Alemão, diante dos olhos do patrão. “Bela voz não?”, diz Gudin, soando orgulhoso por descobrir, desta vez, uma voz do samba que vem de outras terras.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.