Bela e sedutora, a figura bíblica de Salomé sempre foi uma obsessão para Glamour Garcia. Certa vez, a atriz transexual assistia pela enésima vez ao clássico de Billy Wilder O Crepúsculo dos Deuses (1950), em que Gloria Swanson é Norma Desmond, uma estrela do cinema mudo que busca retornar aos holofotes de Hollywood, interpretando justamente Salomé, quando adormeceu. E Glamour sonhou ser Salomé.

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O fascínio, desde a época, virou uma inquietação que só foi se aplacando ao dividir a vontade de realizar algo sobre a personagem histórica com o ator e bailarino português Alexandre Magno, com quem Glamour fez um workshop no ano passado. O resultado do encontro dos dois é o espetáculo solo Salomé, dirigido por Magno, que estreia nesta sexta, 8, na Casa da Luz, na região central de São Paulo.

“O legal da Salomé, mais do que a pessoa histórica dela, também foi todo esse legado que ficou para a gente no imaginário. Uma prostituta, mas que na verdade foi uma rainha, um exemplo de força, mas que alguns veem como exemplo de fraqueza. Acho que isso é uma discussão legal de trazer”, diz a atriz.

Os relatos do livro sagrado cristão contam que a jovem filha de Herodíades, instigada pela mãe, pediu a Herodes Antipas a cabeça de João Batista numa bandeja, em agradecimento à dança que fez ao rei na festa de seu aniversário. Glamour e Magno quiseram ir além da mera encenação desses acontecimentos e criaram uma ficção dessa situação. Na releitura da dupla, Salomé, representando o arquétipo do feminino, promove uma bruxaria para ressuscitar o pregador e, assim, expor a ele seus anseios e suas intenções.

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“Esse ajuste de contas é uma forma de Salomé poder ter uma outra atitude, ou seja, o que ela deixou de falar na realidade, o que ela deixou de mostrar. Um lugar onde, em vez de mandar matar literalmente João Batista, a figura dela possa ser algo transformador”, observa o diretor da peça, que também integra o elenco de Why the Horse?, com Maria Alice Vergueiro.

A cenografia de Rebecca Salloker, composta por uma estrutura com fios entrelaçados em forma de teia de aranha, remete às sensações de aprisionamento e libertação da mulher. No figurino, além do vestido que ressalta a sensualidade da personagem, uma pesada capa transforma a configuração corporal da atriz. O acessório, que segundo Glamour tem 45 quilos, foi confeccionado com pedaços de roupas criadas ao longo de 15 anos de carreira do estilista Gustavo Silvestre.

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Assim como no próprio filme de Billy Wilder, Glamour e Magno buscaram inspiração para o espetáculo na peça homônima de Oscar Wilde, de 1893, e em outras referências na literatura (Gustave Flaubert), na ópera (Richard Strauss) e na dança (Gertrude Hoffman).

Cabeça de gelo

Já a concepção do espetáculo é centrada em atos poéticos que conduzem o espectador aos dilemas de Salomé até chegar, ao término do ritual, ao diálogo com João Batista – o confronto é feito com uma cabeça de gelo que, obviamente, é renovada a cada apresentação.

“A peça vai, de ato poético em ato poético, de ação em ação, até o grande momento em que a Salomé encontra com a cabeça de João. Tem essa fala, esse encontro forte”, diz a atriz. “É um acerto de contas mesmo, entre o feminismo e o machismo, entre um homem e uma mulher, entre o oprimido e o não oprimido e também vai em outras camadas que não a questão de gênero”, resume Glamour. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.