Sacrilégio

"Desfruta da vida com a mulher que amas, durante todos os dias da fugitiva e vã existência que Deus te concede debaixo do sol. Esta é tua parte na vida, o prêmio do labor a que te entregas debaixo do sol." Livro do Eclesiastes, capítulo nove, versículo nove. Estava ali, de forma inequívoca, preto no branco, a Palavra do Senhor. "Por quê?", indagava Padre Juliano, "Por quê?". Mas a resposta ele já sabia, desde há muito, desde antes de entrar para o seminário: porque sim. A Bíblia permitia.

Aliás, permitia não, recomendava. Mas para a Santa Madre Igreja, ao sacerdote era vedado o matrimônio. E Padre Juliano ardia por dentro. Olhando-se no espelho, pensou: "Já não estou tão novo, mas ainda sou bonito." E acrescentou: "Fora as orelhas de abano, sou muito, mas muito bonito." Mas isso ele já sabia. Afinal, não era à toa que oito em cada dez fiéis eram mulheres. E os dois que sobravam nem sempre eram homens no sentido estrito da palavra, você sabe o que quero dizer. E todos vinham à missa não só para celebrar a glória da Ressurreição, mas também para admirar a gloriosa figura masculina de Padre Juliano.

Padre Juliano, dia após dia, sentia-se cada vez mais sufocado pelo amor que a muito custo mantinha preso sob suas vestes sacerdotais. E seu amor tinha nome: Helena. Helena, cuja família era conhecida como das mais devotas, cujo pai era dos mais notórios e generosos dizimistas. Naquele dia, porém, de pois de ler e reler diversas vezes o capítulo nove, versículo nove do Eclesiastes, o atormentado sacerdote decidiu-se. "Se Helena me aceitar, deixo hoje mesmo de ser Padre Juliano, fico sendo só Juliano", pensou. E Helena o aceitou.

* * *

"Eu descobri que a mulher á coisa mais amarga que a morte, porque ela é um laço, e seu coração é uma rede, e suas mãos cadeias." Livro do Eclesiastes, capítulo sete, versículo vinte e seis. Muito tempo havia passado desde que Juliano deixara a batina. A vida foi dura, às vezes. Plano de saúde, aluguel, telefone, água, luz, escola das crianças, prestações, prestações e prestações. Helena, deserdada pelo pai – "Onde já se viu, filha minha casar com Padre? É sacrilégio, é motivo para excomunhão!" – costurou para fora muitos anos. Juliano viu três filhos nascerem e crescerem, mordeu seus pezinhos gordos quando pequenos, abraçou-os e foi por eles abraçado muitas vezes, indescritível a sensação daqueles pequenos membros circundando seu pescoço. E amou Helena. Amou-a em todos os sentidos, e profundamente. Seria tudo perfeito, se Helena não soltasse aqueles puns muito mal-cheirosos. Foram ao médico, que mandou suspender o repolho, a batata-doce e as folhas, que Helena tanto apreciava, mas nada funcionou, os puns continuavam freqüentes e fedidos. Isso tudo fazia Juliano pensar. Pensava sobretudo no Livro do Eclesiastes, capítulo sete, versículo vinte e seis. "Terá valido a pena?", pensava ele, enquanto contemplava a luz da lua.

– Feche a janela e venha para a cama dormir, meu bem, que já é tarde disse Helena.

No fundo, lá no fundo, Juliano já sabia a resposta para a pergunta que volta e meia lhe vinha à mente. E voltou para a cama dormir.

José Antonio Vasconcelos é doutor em História pela Unicamp, professor e pesquisador na Uniandrade e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Paraná.

E-mail: historicismo@hotmail.com

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